Capítulo 9

No seu texto, Taquinho diz não poder identificar nem dar detalhes do amigo que o salvou de falecer na porta de uma mesquita em Amã para não comprometê-lo em suas atividades. Nós podemos saber que era um membro importante da resistência iraquiana e ex-oficial da Inteligência de Sadham Husseim, que teve uma longa estadia no Brasil na época em que os dois países tinham boas e muitas relações comerciais. Para facilitar a narração do papel dele em seu relato, Taquinho deu-lhe o nome fictício de Fadil, o qual, segundo aprendera com o seu preceptor, significa “generoso”. Valemo-nos do mesmo nome para batizar esta personagem da nossa história.

Quando encontrou Taquinho, Fadil ciceroneava uma velha amiga brasileira, que passava por Amã em missão de trabalho e estudos sobre mesquitas no Oriente Médio. Os dois ouviram-no pedir ajuda em língua portuguesa e decidiram levá-lo ao hospital. Mas Fadil ficou curioso e, como estava hospedado perto do hospital, decidiu acompanhar o caso. Tendo percebido a situação de Taquinho pelas cicatrizes que os grilhões lhe deixaram nos pulsos e nas canelas – o que abria a possibilidade de que fosse membro da resistência iraquiana -, para evitar polícia e procedimentos legais destinados a não documentados, suspeitos e indigentes, declarou-se amigo da família do paciente e forneceu ao hospital dados falsos que identificavam Taquinho como cidadão iraquiano. Os médicos, ao examinarem-no, puderam diagnosticar o seu sofrido passado e queriam informar as autoridades. Fadil convenceu-os de esperar o paciente voltar a si antes de fazê-lo, e eles concordaram. Por sorte, Fadil estava ao seu lado, com um notebook, tentando identificá-lo em fotos de membros da resistência desaparecidos, quando Taquinho despertou depois de quase dois dias em que ficara desacordado.

Naquele momento, a movimentação no hospital era atípica e nervosa, por causa de um acidente de ônibus nas proximidades, de que muitos feridos foram levados para lá. Fadil aproveitou-a para escapar com Taquinho. Comprou ali por perto roupas ocidentais, um par de tênis e um turbante, e os levou numa sacola até o leito dele. Ajudado por Fadil, Taquinho saiu do hospital em meio ao tumulto do acidente, sem que ninguém os abordasse. Tomaram um táxi, passaram no hotel para Fadil apanhar a sua bagagem e foram até a rodoviária, onde tomaram um ônibus para Bagdá. Taquinho foi instruído para fingir-se de surdo-mudo na parada de identificação que, decerto, fariam na fronteira entre os dois países. Fadil apresentaria os documentos de ambos, diria que Taquinho era deficiente físico e que respondia por ele. O ônibus estava quase vazio e eles sentaram-se distante dos demais passageiros para conversarem sem ser ouvidos. Fadil era experiente em tais situações, além de muito cuidadoso com os detalhes.

- Em Bagdá – disse-lhe Fadil – você estará mais seguro do que em Amã, que é uma cidade totalmente controlada pela CIA. De lá, será mais fácil para nós repatriá-lo com segurança.

Taquinho, porém, colocou objeções a este último projeto. Não queria retornar, sabia-se mutilado física e espiritualmente, para sempre, e já tinha tomado a decisão irrevogável de deixar-se morrer, ou, se possível, matar-se.

O amigo tentou demovê-lo da idéia e, para convencê-lo, decidiu revelar ao jovem o que ouvira dos médicos que o examinaram. Disse a ele que lhe restava pouco tempo de vida, no máximo um ano, e isto se se mantivesse sob cuidados médicos e hospitalares de boa qualidade. Por que Taquinho não aproveitava esse pouco tempo e não o compartilhava com seus entes queridos?

Taquinho agradeceu o apoio, mas desanimou-o contra-argumentando que só levaria mais sofrimento e tristeza a tais pessoas. Além disso, sentia-se profundamente humilhado e absolutamente incapaz de encarar qualquer uma delas. Contou o que lhe passou desde que saíra do Brasil e, muitas vezes aos prantos, as torturas de que fora vítima inocente. No fim, pediu encarecidamente ao novo amigo que não lhe poupasse nada do que soubera no hospital, queria saber de tudo, nos detalhes.

Ao ouvir atentamente todo o relato, Fadil surpreendeu-se pelo fato de Taquinho nada conhecer dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nem da guerra dos EUA contra o Iraque e o Afeganistão (Taquinho mal sabia da existência de tal país), fatos estes sobre os quais dissertou longamente como um auto-atentado pré-concebido pelo governo norte-americano para que desatassem as duas guerras e outras mais. Especulou que a prisão de Taquinho fora uma das primeiras conseqüências daqueles fatos e que possivelmente ocorrera por engano. Uma vez que ele se tornara um perigo para os propósitos dos que o prenderam, usaram-no como cobaia de experimentos médicos avançados e de tortura científica. Disse-lhe que não era o primeiro caso que lhe chegara ao conhecimento, mas que estava ao lado do primeiro sobrevivente, de que tinha notícia, de tamanha barbárie.

Atendendo ao pedido de Taquinho, Fadil fez-lhe um resumo do que fora informado no hospital. Seus aparelhos digestivo e respiratório estavam indo irreversivelmente ao colapso. Um dos pulmões estava praticamente inutilizado e o outro, muito lesado. O rim esquerdo lhe fora extraído (possivelmente para transplante) e o direito não apresentava bons sintomas. Assim também o fígado, o estômago e os intestinos grosso e delgado. Exames de sangue, de urina e outros revelaram que ele fora submetido, por longos e vários períodos, a altas doses de drogas de toda espécie, algumas capazes de lesar em definitivo certas funções do organismo. Quando foi encontrado, estava à beira do escorbuto, doença fatal que é causada por pelo menos três meses de falta total de nutrição de vitamina C. Fadil especulou que tal desnutrição lhe parecia proposital, talvez uma tática de Guantânamo; ao liberar suas vítimas preparava-as para a morte rápida e longe de suas responsabilidades. Via também como outra tática daquela prisão de alta tecnologia o fato de apesar de violentarem um corpo por todas as maneiras possíveis, o esqueleto permanecer não atingido e intacto. Nenhuma lesão grave, trinca ou fratura fora encontrada no de Taquinho. Assim, uma futura exumação de cadáveres dos torturados não apresentaria provas contra os torturadores.

Já tinham passado a fronteira, sem problemas, quando Taquinho perguntou ao amigo se a resistência iraquiana se valia de ataques suicidas contra os inimigos. Em caso positivo, ele gostaria de se apresentar como voluntário.

Fadil calou-se por um tempo, antes de responder. - Tal honra, se é que eu tenha entendido onde realmente você quer chegar - disse ao jovem - é exclusiva de um verdadeiro Mujahid. Muito diferente do que divulgam no Ocidente, o Jihad não é Guerra Santa, longe disso. Não há tradução possível numa só palavra ou expressão de línguas ocidentais para o seu significado completo. Trata-se de um direito legítimo de defesa que os muçulmanos se outorgam em dois campos distintos: internamente, em si mesmos, contra a perversão da própria alma, e externamente, em defesa da pessoa e da nação islâmicas. Há regras precisas para o segundo caso. Só pode ser usado in extremis e não pode vitimar crianças, velhos e mulheres inocentes. Tem de ser a conseqüência do amor ao Islã, e não do ódio ao inimigo. Não se trata de um instrumento legal de ataque, como pensam os ocidentais, mas de uma cultura de defesa das nossas tradições. Para a religião islâmica, ao se dar a vida pelo Islã, não há o suicídio, mas, sim, a purificação pelo martírio. Usado de acordo com as regras, haverá para o mártir a absolvição de todos os seus pecados. Ele encaminha a sua alma diretamente a Alá.

- E como eu faço para me tornar um Mujahid? – perguntou Taquinho.

- Não sou eu quem pode lhe dizer – respondeu Fadil.

Capítulo 10