Capítulo 5

O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com “pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abri-lo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro.

De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.

Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério.

Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”.

Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.

Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.

Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo.

“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.

As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.

“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.

A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo.

No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”.

Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade.

Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.

Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.

Capítulo 6