Capítulo 19

Os 15 dias foram aproveitados por Taquinho sem ansiedade nem pressa. Não se sentia indo para o final de sua existência, mas ao princípio de outra. Era como se se preparasse para uma viagem sem retorno e, tal como vimos no início desta história, ele o fazia sempre de forma inteligente e bem planejada. Praticamente, ele roteirizou cada hora de cada dia para cumprir rigorosa disciplina religiosa, de saúde física e mental e de desfrute do pequeno paraíso existencial em que se achava, em meio ao inferno da guerra de invasão contra o país que o hospedava.

Certa feita, num momento de repouso, deitado em sua cama, houve um bombardeio aéreo sobre a cidade. Sempre que isto acontecia, ele fechava os olhos enquanto ouvia os zunidos das aeronaves, seguidos de explosões que faziam tremer o solo, ainda que a região atingida se situasse bem longe daquela em que estava, como então acontecia. Todos na cidade sabiam que só os bairros pobres eram alvos das bombas. Entre uma explosão e outra, cronometricamente espaçadas, só se ouviam os ruídos dos aviões num silêncio amedrontador.

Nesses intervalos, Taquinho sempre meditava mais ou menos a mesma coisa: "da Medicina e a Matemática ao jogo de xadrez, dos hábitos de higiene pessoal à iluminação noturna de logradouros públicos, da ética à etiqueta, das ousadias arquitetônicas ao livro encadernado, entre tantas outras conquistas da civilização de que agora desfrutamos, nós, ocidentais, as devemos em boa parte ao que aqui se cultivou com sabedoria ao longo de milênios. E é assim que pagamos tal dívida histórica: ao invés do reconhecimento agradecido, bombas, bombas e mais bombas!"

Depois da longa seqüência, que sempre parecia interminável aos que estavam em terra, as explosões pararam. Após algum tempo, uma voz melodiosa proveniente de algum minarete entoava seguidamente o Azan, em alto e bom som, convidando todos a orar para Deus.

Taquinho não se cansava de admirar aquele povo e o empenho da resistência, que combatia o invasor com todos os meios que possuía. Aquela voz deveria parecer aos invasores, depois de castigarem tão brutalmente a indefesa cidade, como de uma irreverência humilhante, quase um deboche ou um escárnio.

Nesta última fase de sua hospedagem naquela casa não lhe faltou o apoio terno do anjo Zahirah. Shakir e Fadil também se empenharam nos agrados ao Mujahid. Estavam sempre juntos na última oração ou em torno de um narguilé. Durante o dia, Taquinho se empenhava no andamento de seu projeto, escrevendo, lendo muito, especialmente o Velho Testamento da Bíblia, os textos dos profetas, muitos dos quais elegeu como prediletos, incluindo-os em apoio aos relatos que fazia. Nos fins de tarde, lia em voz alta os novos escritos para Shakir, Fadil e Zahirah, e, às vezes, com a presença do clérigo xiita ou de seus assessores jurídicos.

Decidiu pela máxima concisão na parte final, onde descrevia a operação “O Esplendor do Islã”, reduzida a uma síntese de seis parágrafos, entremeados de citações do Alcorão e da Bíblia.

“Ele foi ferido pelas nossas transgressões e torturado por nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz caiu sobre Ele, e, em seu martírio, somos curados”. (Isaías, 53:5)

Preocupou-se em não comprometer a resistência e os autores intelectuais do plano. O Mujahid assumia a integral responsabilidade de sua execução, “com o apoio da resistência” e não descrevia exatamente como o executara, mas o justificava dos pontos de vista estratégico, bélico e moral. Afirmava que não o fazia por ódio ao inimigo e nem aos que o maltrataram. Aprendera a perdoá-los; tinha plena fé, inclusive, a de estar salvando “as almas pecaminosas dos que comigo irão até Deus, o Misericordioso”. Fazia-o em defesa do Islã, do povo agredido, da sua cultura e tradições, e da fé islâmica.

Encerrou o texto com a abertura do Alcorão:

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
Clemente, o Misericordioso,
Soberano do Dia do Juízo.
Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!
Guia-nos à senda reta,
À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.

Ao acordar no dia 24 de dezembro, mesmo sabendo que aquele seria o seu último dia naquela casa, não pensou em nada de especial para desfrutá-lo. Queria-o como um dia comum, igual em harmonia aos demais; a rotina e a simplicidade do dia-a-dia naquele palacete culto e elegante, mas sem afetações, agradavam-no. Pensou em sua terra natal, em seus pais, e que no Brasil estariam comemorando o Natal, festa que nunca o comovera a não ser quando criança, na expectativa de ganhar presentes quase sempre supérfluos. Aprendera a abominar o consumismo, a praga ocidental que roubava a melhor parte da infância, daquela inocência saudável e alegre, desde ali a excitando para a ambição e desejos corrosivos à vida e à sensibilidade e preparando-a para uma juventude alienada e servil de que ele próprio fora vítima desafortunada.

Foi então que escreveu a sua reflexão final, que acrescentou ao relato como um anexo.

Depois da primeira oração, Zahirah veio buscá-lo e levou-o à biblioteca onde já estavam o sufi, Fadil e o clérigo xiita, amigo da casa. Sentaram-se na mesa maior e redonda e o sufi presenteou-lhe o depoimento que fizera para que o discípulo incluísse no envelope. Taquinho o leu com muita emoção; algumas lágrimas chegaram a transbordar de seus olhos. Para ele não podia ser maior aquela honra, maior e mais importante que qualquer diploma que porventura tivesse um dia obtido numa universidade, se tivesse logrado o projeto de sua equivocada juventude. Tinha prontas as cartas para a mãe e o pai, as quais leu para os demais, além da sua nova reflexão; datou-as e assinou-as, para, em seguida, datar e assinar também o memorial. Fadil e o clérigo assinaram o anexo de testemunho que foi encadernado, junto aos textos de Shakir e de Taquinho, ao fim do memorial. Depois ele colocou cada uma das peças escritas nos respectivos envelopes, conforme o plano que desenvolvera, subscritando-os e lacrando-os com goma arábica. Em seguida, entregou solenemente o espesso envelope ao sufi, que o recebeu com uma mesura silenciosa de agradecimento e o guardou no cofre.

Almoçaram juntos, em companhia de dois guerrilheiros da resistência que vieram buscar o Mujahid. Foi um almoço frugal e sem maiores cerimônias. Fizeram a oração do meio-dia, dirigida pelo clérigo, e depois Taquinho despediu-se dele com as reverências de costume, e de Zahirah, com beijos emocionados. Envergando seu belo terno, uma gravata azul marinho e o turbante com o broche de esmeralda, o Mujahid tinha o porte altivo e mostrava-se extremamente agradecido a seus anfitriões.

Fadil foi junto com ele e os guerrilheiros, acompanhados pelo sufi, que fez abrir outras passagens secretas para que descessem por um elevador camuflado na arquitetura complexa do palacete até os subterrâneos que Taquinho conhecera. Frente ao elevador, Shakir e ele fizeram a última saudação, o salam alakum, e depois se abraçaram longamente, beijando-se em ambas as faces.

Ao chegarem ao subterrâneo, entraram num vagonete de passageiros que os levou pelos trilhos daquele metrô secreto até o subsolo do esconderijo onde seriam feitos os preparativos e o treinamento do Mujahid. Subiram por escadarias em espiral, os três homens carregando Taquinho numa improvisada liteira para que ele não se desgastasse na longa ascensão, até chegarem no interior de um prédio abandonado, um velho cinema-teatro fechado há mais de duas décadas e que servia de posto avançado da resistência em pleno centro de Bagdá, quase vizinho à Zona Verde. Lá, já estavam prontos os novos aposentos do Mujahid, incluindo o equipo médico, e uma simulação do cenário real da operação.

Ensaiariam ali, quantas vezes fossem necessárias, cada passo, cada gesto, cada movimento que o Mujahid faria na execução da fase final da operação. Fizeram réplicas de tudo, nos mínimos detalhes, do suspensório, do escapulário, das roupas de Khalid, das garrafas de vinho, além do cenário, em escala natural, que simulava todo o percurso, incluindo a escada e partes do balcão e do salão. No seu notebook Fadil levava vídeos do sósia do Mujahid, com cenas tomadas dele próprio para que servissem de referências na imitação de seus gestos e movimentos.

Durante dez dias trabalharam com intensidade e disciplina; o Mujahid sob permanente supervisão dos médicos. No penúltimo dia, veio o barbeiro junto com Khalid e a mãe, esta de véu cobrindo metade do rosto. O objetivo era o de orientar o Mujahid para que ficasse o mais idêntico possível ao sósia, coisa que não foi difícil para o barbeiro, e chegou a impressionar a ambos, olhando-se um ao outro como se se vissem num espelho. Por sua parte, Khalid e a mãe supervisionaram dois ensaios completos, ele fazendo correções e comentários por gestos que a mãe traduzia. Treinaram até as falas das sentinelas, do patrão, de empregados do restaurante e de pessoas que o conheciam na Zona Verde (as falas eram ditas por Fadil e os guerrilheiros), e como devia respondê-las com gestos, mesuras ou cumprimentos. Fotos de pessoas, ainda não repertoriadas, foram incorporadas ao notebook de Fadil para que Taquinho as memorizasse.

O dia seguinte seria o “Dia D”.

Capítulo 20