Capítulo 23

“De fato” – pensava padre Antonio, meditabundo e muito aborrecido –, “para morrer, basta estar vivo!” Quem poderia imaginar dona Lourdes, que há pouco mais de três meses demonstrava tanta saúde e vitalidade nas festas de Natal e fim-de-ano, hoje morta e enterrada? Ela que fora a maior responsável pelos recordes do Lar da Criança, de arrecadação, repercussão e presenças, desde as barraquinhas da Igreja até os eventos e solenidades que coroaram de êxito a instituição no ano passado, agora premiada e reconhecida por uma respeitada fundação paulista entre as mais eficientes instituições beneficentes do país?

Uma ponta de despeito, o bom despeito, cutucava o ego do velho padre, apesar de sinceramente comovido pela perda daquela que fora grande companheira, amiga, auxiliar, voluntária e, principalmente, filha e devota de Nossa Senhora de Lourdes.

Desde que viera definitivamente para Valadares, em 1968, ele não testemunhara um enterro tão concorrido, e isto não se reduzia apenas à sua igreja, da qual era o pároco há quase 30 anos. Só não foi feriado municipal porque não houve tempo de decretá-lo. Mesmo assim, o prefeito decretou ponto facultativo para os funcionários municipais. Muitas escolas públicas e privadas suspenderam as aulas em homenagem à humilde senhora que fora a responsável pela criação dos uniformes de quase todas elas.

Suspeitava padre Antonio que o enterro dele próprio não chegasse sequer à metade do comparecimento ao dela. Tivera como certo que ele iria bem antes dela, e contava com ela na coordenação das cerimônias fúnebres e das homenagens póstumas. Deu-se o contrário: “Deus sabe o que faz!” – diria a mesma Lourdes. Ele estava indo para os 80 anos e fumava desbragadamente, vício que nunca pensou em largar, pois adorava o tabaco - de todas as espécies, exceto o de cachimbo. Ademais, não era dado a médicos, a exames e a essas paranóias de saúde que impregnam o mundo hoje em dia. Nem a planos de saúde aderira. Dr. Leandro vivia alertando-o para a necessidade de exames regulares, consultas, etc, mas ele só o chamava ou ia até ele e fazia exames quando algo lhe apertava de fato.

Ninguém pudera imaginar a popularidade da boa senhora, ninguém! Foi um corre-corre na Igreja, desde o dia do enterro até a missa de sétimo dia, que caiu numa quarta-feira, e, depois, ele ainda deu ordens de que ela permanecesse sendo homenageada nos sermões de todas as missas celebradas até o outro domingo, além do seguinte, com agradecimentos aos que compareceram.

O velório fora na casa dela, e enormes filas formaram-se na rua para o entra e sai de despedida. Não se conseguiam vagas para os carros que se engarrafavam ali e nos arredores. Vieram o prefeito, as autoridades municipais, políticos, gente rica, a classe média, e, em massa, o povo de Valadares. E crianças, milhares de crianças. Para tanto, nem precisou de jornal ou televisão. Por si mesma, a cidade inteira se mobilizou para homenagear aquela que, na pureza e humildade de um quase anonimato e de fiel devoção a sua Santa, era, em verdade, uma das pessoas mais queridas da região.

Falecera de parada cardíaca na madrugada do dia 31 de março, data que, para padre Antonio, era de má memória desde 1964. A rua e o cemitério foram pequenos para o cortejo e o ritual fúnebre. Populares disputavam com autoridades e políticos a honra de pegar a alça do caixão, ao menos por alguns segundos. As azaléias ficaram ofuscadas pela quantidade de coroas de flores, que tiveram de ser distribuídas por todo o cemitério, desde o lado de fora, na entrada, no átrio, por dentro do portão, ao longo das ruelas que levavam até o túmulo e nas escadarias e nas naves da igreja. O enterro fora marcado para cinco da tarde, logo após a missa de encomenda da sua alma, para a qual se fez necessário que a prefeitura montasse um equipamento de som nas imediações da igreja abarrotada, mas, às sete, ainda havia gente discursando no cemitério cheio de gente. As coroas de flores iam sendo permutadas até a missa de sétimo dia – que outra vez superlotou o templo não tão pequeno, mesmo que não fosse dos grandes –, para atender a peregrinação que faziam até aquele túmulo os que não puderam ir ao enterro.

Era a manhã de segunda-feira, 10 de abril, e, ainda recolhido em seus aposentos no andar de cima da casa paroquial, único lugar que nos últimos tempos lhe era permitido fumar em paz, padre Antonio via, pela janela, Cirineu, o filho dele, as empregadas da paróquia e alguns garis da prefeitura promovendo nova limpeza do caos de flores envelhecidas, além de lixo e resíduos vários, em que se tornara o cemitério ao longo das homenagens à saudosa senhora.

Dali mesmo ele a vira, no dia seis de janeiro, bem de manhãzinha, plantando a última de suas azaléias. Lembrou-se de que estranhara a localização que ela dera àquela, pois sabia-se que planejara o plantio de dez arbustos laterais e, havendo então somente oito, seria normal que plantasse o nono na seqüência de uma das fileiras laterais não terminadas. Porém, ela o fazia ao pé do túmulo, rente à ruela que ali passava, o que despertou sua curiosidade e o fez decidir-se por ir até lá. Demorou-se um pouco a se vestir e, quando lá chegou, ela já havia ido embora.

Comentou o fato com Cirineu, que também estranhou, coçou a cabeça e resmungou: - “Do’a Lurde deve de tá pensando em pô a úrtima nas cabeça do jazigo. Se isto fô, pode inté ficá bonito, mas vai me compricá de tirá a lage prus interro. É mió falá cum ela, padre, cumé queu vô tirá essa lage sem rebentá com as pranta em vorta? E’a já se foi?”

Ele prometeu falar com ela ainda naquele dia. Se não aparecesse, no dia seguinte era certo. Dia sete de janeiro era o dia de Bernadete, e ela nunca faltava à missa dedicada à santa, às seis da tarde, que começava e terminava com a Ave Maria de Schubert cantada pelo coral que ela mesma organizara no Lar das Crianças.

Porém, dona Lourdes não fora àquela missa. Como padre Belizário comentara, durante o almoço, que ela tinha aparecido na das seis da manhã, isto não o preocupou. Naquele mesmo sete de janeiro ele tinha viagem marcada no vôo das nove da noite para BH e, de lá, seguiria para São Paulo, e não teve tempo de especular sobre isso.

Padre Antonio planejara aquela viagem para ser a última que faria a sua terra natal, a cidade de Santos, no litoral paulista. Seria bem mais longa que as anteriores, talvez, de um mês inteiro. Para ele, as viagens estavam a cada dia mais aborrecidas e cansativas, nem as de avião, que antes tanto gostava, lhe agradavam mais. Os aviões mais se pareciam com ônibus vagabundos do interior de Minas, não se podia fumar em lugar nenhum, atrasos, demoras, falta de educação dos funcionários das linhas aéreas, tudo era uma chateação sem limites.

Havia adotado Valadares em definitivo como a sua segunda terra natal e nela pretendia ficar, para sempre. Parentes em Santos só tinha o sobrinho, filho de sua irmã que falecera há mais de dez anos, a esposa dele e a filharada que não sabia a quantas ia naquela data, mas já passara dos seis pimpolhos em escadinha, meninas e meninos, alguns já quase adultos. Em São Paulo, ligaria para saber e compraria presentes. Iria nomear o sobrinho como seu único herdeiro, transferindo a ele os poucos bens que possuía em Santos, por herança dos pais, e os direitos que recuperara desde a anistia, inclusive as indenizações que estava por receber do governo federal.

Recuperara seu posto de capelão da Marinha, que perdera em 1966, na patente de tenente, e recentemente fora promovido a capitão da Reserva. Além do que ganhava da Igreja, este soldo e as indenizações lhe dariam folga financeira mais que suficiente para os poucos anos que lhe restavam. Gostava do sobrinho e tinha dele a reciprocidade em afeto e amizade. O “garoto” (que já ia para mais de 40) sempre lhe fora prestativo, honesto e até desnecessariamente rigoroso e pontual ao cuidar dos negócios da família em Santos.

Religiosamente, desde o falecimento de sua mãe, ele enviava a Valadares, pelo correio, sempre no dia cinco de cada mês, um envelope com contas, extratos e comprovantes de tudo o que era de interesse do tio, junto com o depósito, feito no mesmo dia em sua conta corrente, do valor que lhe cabia das receitas auferidas com os aluguéis da sala e do apartamento que herdara. E, mesmo sob a insistência do tio, sempre se recusava a tirar para si um centavo sequer por tais favores.

Cuidava também, como procurador e advogado, depois que se formara em Direito, das demandas que nos foros de Santos e de Brasília ainda se travavam pela recuperação de seus direitos e patente, desde os fins dos anos 70, com a publicação do decreto da anistia. E se recusava a recolher honorários pelo trabalho, nem os dos êxitos financeiros logrados.

A burocracia e a papelada que se fizera necessária para cumprir os objetivos da viagem acabou por prolongá-la até o dia 10 de fevereiro, data que para padre Antonio era limite. No dia 11, se comemoraria em todo o mundo o Dia de Lourdes, e ele nunca perdera a celebração da missa dedicada à padroeira da sua Igreja, desde que dela se tornara o pároco. Nesse tempo em que esteve fora, quase não fez contato com Valadares; uma ou outra vez, entre as poucas decisões que foram tomadas na paróquia naquele período morno do ano, e que precisaram do concurso dele, fizeram-no via telefone ou por e-mail, com a máxima brevidade possível, pois ele não era dado a conversas por telefone (nem celular possuía) e menos ainda por computador.

Depois de chegar ao aeroporto de Valadares, o primeiro comentário que ouviu do chofer de táxi que o levou até a paróquia, quase meia-noite, foi sobre dona Lourdes.

Capítulo 24