Capítulo 25

Eram quase oito da manhã quando padre Antonio saiu da casa paroquial em direção à casa de dona Lourdes. Sua figura esguia, alta e de cabeça branca, todo de preto e, como sempre, carregando a pasta preta de couro, chamava a atenção dos transeuntes. Ele sabia disso, fora um dos que contestaram a desobrigação do uso da batina, lá pelos anos 60. Na época, taxaram-no de conservador e antiprogressista, logo ele que enfrentara, de peito aberto, a ditadura militar e as hostes reacionárias da igreja católica que a apoiaram. Ainda mantinha sua opinião de que a desobrigação do uso da batina constituiu-se numa das maiores fraquezas de sua igreja desde que posta em prática. Abrira as portas para as hordas de “pastores protestantes” – para ele "o mais infame dos tipos sociais que assolam a vida nacional" –, proclamarem-se porta-vozes de Deus perante um povo que não tinha mais no tradicional traje o referencial de respeito e credibilidade a que, mal ou bem, estava habituado. O poder da batina salvara-lhe a vida e as de muitos manifestantes numa passeata dos portuários, em Santos, logo depois do golpe de Estado. Os soldados receberam ordem de disparar contra os manifestantes, mas, ao verem-no de batina à frente da passeata, se recusaram a obedecê-la. O comandante do batalhão veio até ele para tentar retirá-lo da manifestação e ele se negou a deixá-la enquanto não tivesse garantias de que não haveria disparos e agressões aos civis. E a passeata prosseguiu.

Agora, ele a vestia para estar à altura de uma das missões que considerava das mais importantes de seu sacerdócio. Iria prestar serviços a uma católica que precisava deles e que, em sua opinião, é modelo do que qualquer igreja poderia almejar para seus fiéis. Certamente não iria ouvir confissão de pecados; dona Lourdes estava entre os pouquíssimos católicos que conhecia que não os cometia. Não era fanática, beata, mártir ou exemplo de sofrimento a ser santificado; era o que deveria ser todo bom católico: obediente aos mandamentos de Deus e fiel seguidora dos ensinamentos simples e iluminados de Cristo.

Dona Lourdes abriu a porta para ele já exclamando a surpresa pela batina:

– Se não fossem os cabelos brancos, padre, eu acharia que estava tendo uma visão do passado! Fui eu quem abriu esta mesma porta para o senhor entrar quando veio pela primeira vez à nossa casa, lembra-se? O senhor me pareceu tão elegante naquele dia como agora, nesta batina bem cortada. Parabéns, o senhor se mantém muito bem conservado.

– Como iria esquecer-me, Lourdes? Você era uma linda menina e tinha os olhos tão brilhantes e vivos como estes que estou mirando agora.

Vestida num pengnoir leve, de cor bege, e calçando chinelas, ela convidou-o a sentar-se na mesa da sala de jantar e trouxe a bandeja de café, incluindo cinzeiro e um par de xícaras. Perguntou-lhe pela viagem, e ele respondeu que correra bem, mas não viera para falar, e sim para ouvi-la. Antes, devia expressar a solidariedade, dele e da paróquia, ao que estivesse ocorrendo a ela, fosse o que fosse, incluindo a decisão que tomara em relação ao Lar, ainda que infelicitasse a todos lá, que a amavam, e ele incluía nesse universo “até a nossa padroeira”.

Dona Lourdes agradeceu sentando-se frente a ele e pondo sobre a mesa uma velha pasta de couro que pertencera a seu pai, cheia de papéis.

– Lembra-se, padre, quando lhe falei que só acreditaria na morte de Taquinho se dele recebesse um sinal convincente? Pois o recebi; e com ele o fim das minhas esperanças...

– É triste, Lourdes, meus sinceros pêsames. Confesso que faz tempo que perdi as esperanças de vê-lo outra vez nesta vida. Posso saber quando e em que circunstâncias ele morreu?

– Decidi que essas informações eu as levarei comigo para o túmulo, padre, perdoe-me, não é desconfiança em relação a ninguém (não conseguiu mais conter as lágrimas).

– Lourdes, este direito é todo seu e será respeitado, não se aflija – disse o padre dando-lhe uma das mãos e erguendo-se para enxugar-lhe o rosto delicadamente com o lenço branco e limpo que sempre trazia consigo.

– Tentei ser boa filha – respondeu ela soluçando e esforçando-se por conter as lágrimas – e vi no meu pai um exemplo de grande homem. Era honesto, trabalhador e talentoso. Conquistou renome de virtuoso alfaiate ainda quando se assinava Pierre Raghid. Veio então a ditadura militar e a implicância com o Pierre, numas ilusórias ligações com comunistas franceses. Ele percebeu e mudou seu nome para Pedro Raghid. Alguns anos depois, a implicância passou para o Raghid, e outras mais que ilusórias ligações com terroristas muçulmanos. Tornou-se, então, o Pedro Alfaiate, e viu o respeito e a consideração com a sua pessoa, o seu trabalho e a sua profissão se dissolverem até a quase nulidade. Procurava não deixar transparecer, porém ele morreu muito triste e desanimado, eu que o diga.

– No decorrer desse processo – continuou ela tentando dominar as emoções – encontrei-me com o meu marido e procurei, igualmente, ser uma boa esposa. Creio que consegui sê-lo até que me tornei mãe. No momento em que me tornei mãe, vi-me diante de um dilema. Tive de optar pelo meu filho, sem, contudo, abrir mão da fidelidade a um marido distante, quase ausente do lar. Não deixei de amar meu marido apesar disso, nem de apoiá-lo e admirá-lo por sua bravura e persistência. Um homem que conseguiu reverter perspectivas mais que negativas de um berço infeliz e tornar-se um vitorioso profissional do ofício que abraçou.

– Padre Belizário me informou das novidades a respeito da tragédia; que absurdo! – interrompeu-a padre Antonio.

– No que diz respeito a mim, padre, sinceramente, eu preferiria não tê-las conhecido. O acidente, como razão de sua morte, me era mais confortável. Doeu-me muito saber que fora vítima de quase um crime, um mau procedimento, como ele falava. Tudo por ganância...

– As exportações, as malditas exportações! – exclamou o padre, sem conseguir se conter – Não sei como uma praga dessas pode assolar um país como o nosso sem que encontre a menor resistência de parte alguma, nem mesmo do povo.

– Segundo as viúvas me contaram, as investigações do Ministério Público encontraram relatórios do próprio Eustáquio dirigidos à diretoria da Vale em que denunciava com veemência o não cumprimento sistemático de vários procedimentos de segurança nas detonações. Nenhum deles mereceu sequer comentário ou manifestação da alta direção. Tinham pressa, queriam aumentar a produção, cumprir metas de exportação. O Ministério Público suspeita que aqueles homens não foram os primeiros a serem criminosamente soterrados por tais negligências. Tudo o que vem me acontecendo me parece uma perseguição contra a pobre gente do nosso povo, gente como eu, e, no meu caso, filha única de pai viúvo, esposa fiel de marido ausente e mãe amorosa de filho único... ai, Taquinho, meu filho querido... Taquinho... (derramou-se em novo e soluçante pranto).

Capítulo 26