Capítulo 4

Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã, que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se.

Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só.

Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos.

O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.

Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção.

Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres.

Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”.

Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.

Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.

Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta.

Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.

Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”.

Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.

Capítulo 5