Retorno à razão (ou Duchamp e seus camaradas)

Pouco depois do fim da Primeira Grande Guerra, em uma época difícil e desalentada, Francis Picabia se permitiu afirmar que “a arte é um produto farmacêutico para imbecis”. Era uma frase provocadora, de acordo com o espírito niilista e sem ilusões que surgiu depois da guerra, e que hoje, noventa anos depois, poderia servir para ilustrar a opinião (e para definir a atitude perante a arte) que sobre o público têm boa parte dos críticos e sacerdotes da cultura, além dos mercadores e beneficiários do grande negócio das megaexposições, museus e coleções particulares. E que torna possível fraudes a partir de banalidades como as de Damien Hirst, capaz de levar a preços de disparate um tubarão como peça artística ou de vender um bezerro conservado em formol, ou as de Tracey Emin, ilustrada artista que monta uma “instalação” composta por sua cama, as colchas manchadas de fluidos vaginais, camisinhas usadas, sua roupa íntima suja, garrafas de umas e outras beberagens. Soberba estupidez. Mas já se sabe que tudo é possível na época das maravilhas do capitalismo declinante, desde que haja montanhas de dinheiro em jogo.

Man Ray já então ironizava a ingente obra intelectual que especulava com a arte abstrata, com os autores de prolixas exegeses da obra artística fazendo-se de pretexto intelectual a um comércio que crescia a cada dia e acumulava lucros milionários. Picabia, por sua parte, que apostava numa arte amorfa, ria, como Marcel Duchamp, das idiotices elevadas à categoria de “obras de arte” que críticos e marchands acatavam tão seriamente. Porque, no grande universo da arte contemporânea, há obras brilhantes, intuições geniais, mas também há bazófias, e, não raro, bobagens sem qualquer transcedência. Na trajetória de Duchamp, e na de seus amigos Picabia e Man Ray, encontramos tudo isso mesclado, como na poesia de Nicolás Guillén[1].

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Retorno à razão é um filme de Man Ray que não chega a três minutos de duração e cujo título irônico faz referência às sombras que compõem as imagens na película. Rodou-o em 1923, quando Lenin tinha já um pé na tumba, e, na América, terra de Ray, se acendiam as luzes dos anos loucos, quando os inspiradores do Great Gatsby brilhavam em suas festas de Long Island. Retorno à razão nos conduz à lembrança do filme The Great Gatsby, do irlandês Herbert Brenon, rodado em 1926, a partir da novela de Scott Fitzgerald de mesmo nome, filme do qual nada sabemos, porque se conservou apenas um minuto da metragem: sombras, como no celulóide de Man Ray. Parece uma guinada na história: nesse ano, Ray era ainda um jovem de pouco mais de trinta anos e podia ter perfeitamente compartilhado dessas noitadas de álcool, sexo e cocaína que Scott Fitzgerald relata em sua novela, ainda que, em 1926, fazia cinco anos que havia deixado Nova York por Paris, depois de publicar o único número da revista New York Dada. Em 1923, na estréia do filme de Ray num teatro de Paris, Aragon, Breton, Éluard, Péret, organizaram um escândalo para promover a sessão, ação própria das inclinações provocadoras que acompanhavam as vanguardas e os jovens, e não tão jovens, que, às vezes às cegas, buscavam novos caminhos para arte e a vida. Esse filme de Ray foi exibido recentemente na exposição organizada pelo Tate Modern of London e o MNAC de Barcelona, dedicada aos que seus curadores qualificam de artistas provocadores do século 20: Duchamp, Picabia e Man Ray, expoentes de uma corrente vital que impugnava a tradicional concepção histórica do que seria uma obra artística e que entraram na vida adulta quando o impressionismo ainda dominava o panorama artístico europeu.

Aos três os uniu durante toda a vida adulta uma amizade que influiu em suas propostas intelectuais, e a mostra do Tate é uma evidência de que as correntes da moda, quase sempre dependentes dos mercadores e da busca do lucro, consideram hoje o fenômeno dadá um dos movimentos fundamentais da arte contemporânea, algo que não deixa de ser um paradoxo se consideramos que os dadaístas proclamavam, já nos tempos da grande guerra, a “morte da arte”. Tristan Tzara, Hans (ou Jean) Arp, inclusive Breton, formam o grupo de dadaístas que, de Zurich, fazendo da provocação e da burla um recurso central de suas atividades artísticas, conseguiram romper as regras convencionais, forçando a codificação de outra leitura e a busca de novas definições para o “objeto artístico”. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico Duchamp, Picabia e Man Ray eram dadaístas sem sabê-lo. Estavam em Nova York quando tiveram notícia do movimento dadá graças a uma carta enviada pelo próprio Tzara no final de 1916.

Duchamp e seus camaradas se deram conta então de que tinham propostas semelhantes às do grupo de Tzara. Constataram que os que começaram a debater o conceito de obra artística, burlando das convenções consagradas, aceitas pelo público culto e pelas distintas correntes artísticas, e postulando a provocação como recurso foram o romeno Tzara, o francês Hans Arp e os alemães Hugo Ball, Richard Huelsenbeck (que chegou a afirmar que o dadá “era o bolchevismo alemão”, ainda que o dadá pouco unisse Berlim a Hannover), Schwitters e seus Merz, incluindo Grosz. Duchamp, Picabia, Ray, que configuraram o dadá novaiorquino, são os que nos interessam aqui. De fato, quando Tzara e seus amigos fundaram o Cabaret Voltaire para debochar da cultura estabelecida, conectaram com as inquietudes de uma revista, 291, criada na galeria do nº 291 da Quinta Avenida, na qual colaborava Picabia, que fundaria em sua honra outra revista, a 391.

Tudo começara poucos anos antes. Em setembro de 1911, encontraram-se no Salon d’Automne[2] um normando, Marcel Duchamp, que viera para a capital francesa sete anos antes, e Francis Picabia, um parisiense descendente de espanhóis, filho de um adido da embaixada cubana. Nesse momento, Duchamp tinha 24 anos, e Picabia, 32. O primeiro procedia de uma família com inquietações artísticas, tal como seus irmãos Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon. Dali, fizeram-se amigos e seguiram trajetórias paralelas, até que, quatro anos depois, em 1915, enquanto a Europa se desagregava, voltaram a se encontrar nos Estados Unidos.

Duchamp chegou a Nova York em 15 de junho de 1915, quando a população européia começava a se dar conta de que a guerra seria longa, e já se olvidavam os repugnantes gritos de júbilo com que muitos haviam saudado o início do conflito. Os irmãos de Duchamp, Jacques e Raymond, haviam se alistado no exército francês. Por sua vez, Picabia, que deveria ir a Cuba numa missão de abastecimento para as forças armadas francesas, desertou do exército e foi para Nova York, onde chegou poucos dias antes de Duchamp. Lá, voltaram a se encontrar e conheceram um filho de imigrantes russos, Emmanuel Radzitsky, cuja família havia adotado o sobrenome Ray quatro anos antes. A camaradagem entre Duchamp, Picabia e Ray duraria enquanto vivessem. Frequentavam muitas personagens, como, por exemplo, o pitoresco Arthur Cravan, e Henri-Pierre Roché, que também viajara de Paris a Nova York e que nos deixou O atelier de Duchamp na Rua 67 West, 33, ensaio fotográfico feito entre 1917-18, onde se vê a Roda de Bicicleta que tanto daria o que falar. É o mesmo Roché que deixou uma novela inacabada, Victor, na qual descreve suas relações com Duchamp, Picabia e a atriz Beatrice Wood (também escritora, pintora e amante de Duchamp, que morreu em 1998: viveu 105 anos!). Muitos anos depois, Roché mereceria a atenção de Truffaut[3]. O studio da 67 West era frequentado pelos três camaradas naqueles anos novaiorquinos em que criaram um peculiar núcleo dadá, e, mesmo depois de se separarem, sempre mantiveram relações, às vezes muito estreitas, compartilhando experiências, frequentando os mesmos lugares e círculos de artistas, circunstâncias estas que explicam boa parte da produção que deixaram, de seus interesses intelectuais e das anedotas públicas e privadas a respeito deles.

Nos anos anteriores à Primeira Grande Guerra, tanto Picabia como Duchamp (e talvez Ray, ainda que não se saiba com precisão) se interessaram pelas idéias de um filósofo alemão do século XIX, Max Stirner, considerado por alguns “anarquista antes do tempo”, que propunha uma peculiar forma de reivindicação individualista, contrária ao Estado, idéia solipsista que seria desdenhada por Marx, mas que as correntes anarquistas da época (Goldman, Berkman) acolheram com interesse. O Estado, a Humanidade, Deus, são para Stirner entes imaginários, falsos, e a única certeza é o Indivíduo, com maiúscula. Duchamp chegou a reconhecer que sua contribuição artística tinha fundamentos filosóficos na obra de Stirner Der Einzige und sein Eigenthum (O único e sua propriedade). No prólogo dessa obra, Stirner começa a dissertação citando um verso de Goethe, “Fundei minha causa em nada”, e a encerra afirmando “O divino vê a Deus, o humano vê o homem. Minha causa não é divina nem humana, não é nem a verdade, nem o bem, nem o justo, nem o livre; é o meu, não em termos gerais, senão únicos, como eu sou único. Nada está por cima de mim.” É toda uma declaração de princípios que ilumina boa parte da trajetória de Duchamp e o dadaísmo. Ao mesmo tempo, não devemos ignorar que Man Ray frequentou o Ferrer Center de Nova York, fundado pelos seguidores de Ferrer i Guàrdia[4]. Dadá foi uma rebelião contra o estabilishment, mas não uma revolução que pretendia marchar com os movimentos políticos mais renovadores, ainda que o núcleo dadaísta berlinense tenha adotado um perfil distinto, mais radical. Porém, o dadaísmo era a antiarte, o sem sentido, o niilismo feroz que divertia os espíritos audazes precisamente porque escandalizava a burguesia bem pensante, mesmo que estivesse longe de atemorizá-la. O dadá ia contra tudo e todos, pelo menos na aparência. Talvez por isso, Duchamp debochasse dos cubistas que seguiam a estrela de Picasso, mas não via problemas em apresentar seu amigo Picabia a seus irmãos envolvidos com o cubismo, nem ligava que o amigo, ainda jovem, já conhecesse Braque. O provocador Picabia, laço entre o dadaísmo parisiense e novaiorquino, diria depois que “o cubismo é uma catedral de merda”, sem explicar se se referia à imagem de um palácio episcopal cheio de excrementos ou à de uma igreja decrépita e decadente. Tanto faz. A célebre exposição da Society of Independent Artists, na qual Duchamp apresentou seu urinol[5], seria de certa forma o ponto de partida de uma atitude radical que chegaria a extremos delirantes quando seu amigo Arthur Cravan, que se afirmava poeta, pintor, boxeador, cuidador de cangurus, parente de Oscar Wilde, ladrão e outras lindezas, teve de pronunciar uma conferência, na qual chegou bêbado (carregado pelo próprio Duchamp) e tentou desnudar-se diante do público, protagonizando um escândalo monumental, porém inconsequente. Puro dadá. A vida é cheia de casualidades: esse mesmo Cravan, que tinha viajado de Barcelona até Nova York no mesmo navio em que viajava Trotski, desapareceu no Golfo do México em 1918; e o líder bolchevique, sempre preocupado com as questões artísticas, deixou Nova York uns dias antes da exposição que exibiu o urinol de Duchamp, numa das tantas coincidências da história, apesar de que os dadaístas passavam longe do radicalismo político que representavam Trotski e o bolchevismo.

Tudo parecia ir muito bem, mas Nova York se esgotava: em outubro de 1917, Picabia volta ao Velho Continente, a Barcelona, e Duchamp vai para a Argentina em meados do ano seguinte, para, um ano depois, voltar a Paris. Por sua parte, Man Ray permanece em Nova York até que, em 1921, se instala em Paris, onde viverá até o começo da ocupação nazista. A fotografia documenta esse período e muitas de suas paixões, apesar de que a Man Ray não agradava ser reconhecido só como fotógrafo. Na exposição do Tate vemos Picabia, ao volante, em 1922, capturado pela câmera de Ray: nessa imagem o pintor posa como se fosse Tamara de Lempicka[6], porém olhando para a câmera e com uma enorme buzina ao alcance de uma de suas mãos e com a outra apoiada no volante. A Picabia sempre agradaram muito as mulheres, o ópio e a velocidade: teve seu primeiro automóvel quando era uma extravagância possuir um, em 1900.

Na exposição organizada pelo Tate com obras dos três camaradas, exibe-se a Gioconda com bigote e cavanhaque, olhando o visitante, esse célebre (e insignificante) L.H.O.O.Q., que Duchamp fez em 1919, e que depois teria novas versões. Também está o Porta-garrafas, uma geringonça para apoiar garrafas feita de aço galvanizado que Duchamp comprou em 1914, expôs e jogou no lixo (e teria de comprar outras iguais depois), e o urinol, ou A Fonte, assinada por R. Mutt. Todos os ready made ali expostos são réplicas produzidas por um velho amigo do artista, Arturo Schwarz, a quem encarregou, muitos anos depois, de fazer as cópias de seus objetos perdidos ou simplesmente desprezados nas lixeiras, circunstância que bem nos demonstra a importância que o próprio Duchamp dava aos objetos que utilizava para suas provocações, a essas “obras” tão veneradas depois pela crítica sem critério. Estava também ali Homem e Mulher jovens na primavera, de 1911, uma obra que recorda as figuras da última etapa de Matisse, e o Nu descendo a escada, que foi exibido pela primeira vez em Barcelona, e, em 1913, em Nova York, obra que escandalizou (como um nu se representa descendo uma escada? – pensaram), e que buscava capturar o movimento com base na fusão de imagens estáticas, como faziam naquela época outras correntes: depois de tudo, Marinetti chegou a afirmar que um automóvel veloz era mais belo que a Vitória de Samotrácia. E o Moedor de Café, de 1911, que é, segundo Duchamp, uma “descrição” do mecanismo. Depois ele faria o Moedor de Chocolate nº 1, que seria o motivo central da parte inferior do Grande Vidro, obra que realizou entre 1915 e 1923, valendo-se do vidro como suporte para um jogo de peças representando “uma noiva e seus sete amantes”, e que obriga a integrar a visão do entorno na própria obra, posto que o espectador vê o vidro e, através dele, o espaço onde está exposto. A noiva está presente também em outras criações de Duchamp, da época em que esteve muito interessado por Lucas Cranach[7].

A Roda de Bicicleta, de 1913, era um brinquedo, uma curtição, porque Duchamp, que gostava de ver a roda girar, não havia inventado ainda o conceito de ready made.[8] Quando o fez, utilizava qualquer objeto, sem valor nem relevância artística, para outorgar-lhe a categoria de arte pelo simples procedimento de considerá-lo como tal, assinando-o e dando-lhe um título. Muitos desses objetos são ironias, piadas engenhosas, trastes que chamam a atenção do espectador ou que o surpreendem. Ray seguiria seus passos fotografando combinações de objetos, onde a obra de arte era a fotografia obtida. Tonsura[9], de 1919, é um célebre retrato que fez de Duchamp, ainda que ninguém saiba o porquê daquela estrela de cinco pontas raspada no crânio dele. Talvez não haja necessidade de sabê-lo, e fora uma simples curtição, como tantas desses três camaradas (Duchamp, por exemplo, inventou um sistema para ganhar dinheiro na roleta, que, pelo visto, não o ajudou em nada). Ready made rectificado (Wanted $2.000 Reward), de 1923, é um cartaz que zomba dos antigos panfletos do tipo “procura-se”, no qual Duchamp incluiu umas fotografias suas de passaporte e pôs o nome de Rrose Sélavy, sua personalidade feminina, e Fresh Widow, a janela negra da mesma Rrose Sélavy, de 1920, que nos deixa inermes ante a obscuridade. Ao lado, estava Mirall, de 1964: é um espelho, nada mais, assinado por Duchamp em seus últimos anos. Sempre irônico, Duchamp anotou: “Estou assinando futuros retratos ready made”.

Picabia chegou a ser um pintor expressionista, até com certo êxito: Adão e Eva, de 1911, é uma obra na qual já inicia alguma abstração. Também foram exibidas Volto a ver em minha memória a minha querida Udnie, de 1914, ao que parece inspirada numa bailarina do navio que o levou de Nova York a Paris, ainda que haja suspeita de que a obra tenha sido iniciada um ano antes - Udnie que dizer: uni-dimensionalidade -, e Noiva, de 1919-1922, que lembra algumas inclinações da vanguarda russa. Há ocorrências de obras sem interesse, como Mulheres com bulldog, um óleo sobre cartão, de 1941-42, de Picabia, que foi adquirido pelo Beaubourg de Paris, e que este museu poderia enterrar para sempre em seus porões, por muito que o autor o fizesse deliberadamente feio, de mau gosto.

Man Ray é representado com O Povo, de 1913, uma pintura de influência cubista, e com Auto-retrato com metade da barba, de 1943. E com picardias sobre seus amigos: Marcel Duchamp com peruca, de 1950, Duchamp com um colarzinho, de 1955, no qual Duchamp leva o colar à frente, como se fosse uma mulher turca. A recordar, a célebre fotografia que ele fez de Duchamp vestido de mulher, adotando a personalidade de Rrose Sélavy, ou a famosa imagem O manequim de Marcel Duchamp, onde a armação só veste a camisa e a jaqueta, e uma lâmpada vermelha para mostrar que é uma puta. Esse gosto pelo disfarce, compartido por Duchamp, Picabia e Ray, adotando identidades falsas, zombando dos iniciados, como a ironia tão repetida de Duchamp em travestir-se em Rrose Sélavy (nome que surge da certeza de que “o sexo é a vida”, dito em francês), ou de Picabia disfarçando-se de enfermeira e Ray de modelo, debochando das convenções, é uma constante de suas atividades, não sei se as chamaria também artísticas.

Apesar de muitas serem obras menores, Ray destaca-se por sua imaginação. A Vênus restaurada, de 1936, com as cordas e o molde de gesso, é uma obra dos meses em que trabalhou com Paul Éluard, colaboração que lembra a de Rodchenko com Maiakovski, ainda que a dos soviéticos fosse muito mais intensa; e o Peso de papéis de Príapo, de 1920, As férias maiores, de data desconhecida, O Enigma de Isidore Ducasse, de 1920, onde Ray parece nos antecipar Beuys[10], quando este nem havia nascido. E sua célebre prancha, titulada com ironia Cadeau (Regalo), de 1936. Na mostra há exemplos de solarização, um efeito descoberto por Ray e sua amante, a fascinante Lee Miller, que também se dedicava à fotografia. Os ensaios desse efeito com impressões fotográficas, sem câmera, deram a série dos rayogramas. A vida era uma curtição, sim, mas podia ser também uma tortura: quando Miller, que era quase vinte anos mais nova que Ray, o abandonou em 1933 depois de uma relação de três anos, este caiu em desespero, sentimento que ilustrou com obras tão surpreendentes como o famoso Objeto indestrutível, um metrônomo a que acrescentou a fotografia de um olho. O amor de Miller passou como uma estrela fugaz. Ficou a sugestiva memória, numa fotografia de 1930, em que vemos Miller nua, fazendo bolhas de sabão.

Coisas como a Étant donnés (Dádiva) que Duchamp produziu ao longo de vinte anos, entre 1946 e 1966, quase em segredo, onde vemos a porta rural com os orifícios, com o nu de uma mulher por detrás mostrando seu sexo em primeiro plano, necessitaram uma gestação laboriosa, ainda que tenham muito de ironia e deboche. Essa instalação, como seria qualificada hoje, só seria conhecida depois da morte de Duchamp: é uma obra que, ao que parece, nasceu da paixão do artista por Maria Martins, esposa de um embaixador brasileiro, e a tornou prisioneira naquela fresta para sempre.

O mesmo se deu com idéias como a Faux vagin, de 1963, em que Duchamp se vale de uma placa de um carro Volkswagen, que, pronunciado à francesa, soa como essa falsa vagina com que intitula a obra. As sugestões do sexo, a interpretação livre do erotismo e as relações sexuais desinibidas foram uma constante na obra dos três autores, até o extremo de Duchamp considerar que o sexo era “o fundamento de tudo”. Seus companheiros não ficariam atrás, mesmo sem chegar aos limites de Duchamp, no recurso engenhoso da ironia, do achado intranscendente, que outros vão aplicar sentido: em 1968, Ray põe um cigarro sobre uma cópia de um auto-retrato de Leonardo e o intitula O pai da Gioconda; há que dizê-lo: é uma simples reprodução com um cigarro de mentira; ou no Monumento ao pintor desconhecido, de 1953, no qual Ray debocha do destino do artista: ele nos mostra um rastelo de croupier.

Talvez seja Duchamp o mais interessante e imaginativo dos três. Porém os anos de juventude passaram com rapidez. Em meados dos anos vinte, Duchamp já trabalhava pouco e pensava em dedicar-se ao xadrez. Realizaria algumas obras, quase em segredo, como a Étant donnés, e algumas caixinhas. E se faria marchand à sua maneira. Em 1923 volta a Paris e se casa (na igreja!) com uma jovem herdeira, Lydie Sarazin-Levassor, vinte anos mais jovem que ele, matrimônio que não durou muito. Por sua vez, Picabia, que já havia rompido com os dadaístas, segue desenvolvendo obras semelhantes e, mais tarde, voltou a se interessar pela arte figurativa. Man Ray continuaria com seus experimentos fotográficos, ao mesmo tempo em que pintava e se dedicava ao surrealismo. Duchamp viveu em Paris até 1940, com a cidade ocupada pelos nazistas, se estabeleceu na França Livre, e, em 1942, foi para Nova York (onde permaneceu até sua morte, mas não sem passar largas temporadas na França). Mary Reynolds, uma velha relação sentimental, ficou em Paris colaborando com a resistência, até ir se encontrar com ele, nos EUA, em 1943. Ele se casaria ainda outra vez, em 1954.

Duchamp, esse peculiar personagem que quis “passar para a clandestinidade”, é o autor dadá mais notável e chegou a ver a primeira grande exposição que a Tate Gallery de Londres montou sobre sua obra, em 1966. É provável que tenha rido bastante diante da sacralização que então já se fazia das suas estripulias e as de seus camaradas, veneração que continua crescendo, até ao ponto de, faz apenas um par de anos, os grandes centros mundiais de arte contemporânea, o MoMA, o Beaubourg e a National Gallery de Washington, organizarem a maior exposição dedicada ao efêmero mas influente movimento dadá. Muitas das peças hoje consagradas (uma réplica! – insisto, réplica –, da Roda de Bicicleta foi vendida não faz muito por quase dois milhões de dólares!) nunca foram consideradas importantes por Duchamp e seus companheiros, porque outorgavam relevância ao gesto e não ao objeto. É provável que Duchamp tenha escarnecido também da eleição de seu urinol de porcelana industrial, comprado em um comércio vulgar novaiorquino, como a obra de arte mais influente do século 20. Se Gombrich[11], que viveu quase todo o século 20, se envergonhava de uma época que fez de um urinol a obra mais célebre da centúria, nós, mesmo que valoremos a ironia do espírito de ruptura e burlesco dos dadaístas, seu aspecto cômico, seus jogos de palavras, seu sarcasmo, inclusive o seu niilismo, o erotismo com que prendaram suas obras, não podemos deixar de constatar sua indiferença diante das propostas políticas de ruptura com a decadência e a corrupção da burguesia européia. Porque os irreverentes frequentadores do Cabaret Voltaire da Rua Spielgasse de Zurich ignoravam que, ao mesmo tempo, na mesma rua, vivia um homem que a história faria conhecido como Lenin. De fato, com exceção do núcleo dadaísta alemão – que se comprometeu com a revolução proletária e cujos membros ingressaram na Liga Espartaquista e no seu prosseguimento, o Partido Comunista alemão -, as questões sociais e políticas, sempre mais relevantes que a arte, não estavam entre os interesses do dadá. Esse humor peculiar, sarcástico, dos três camaradas é um dos traços que permanecem atuais. De Ray, é marcante a sua foto Kiki e Man Ray, sul da França, de 1928, onde a vemos insinuando seus peitos e o fotógrafo com um gorro de camponês, como se fossem uma puta e o cliente. Ou a pequena provocação de L.H.O.O.Q. da Gioconda, acrônimo absurdo cujo som da leitura das letras nos leva à frase em francês “Elle a chaud au cul”, isto é, “ela está com o cu quente”, o que, no vulgo, significava “ela está muito excitada”. Esse humor irreverente, às vezes anarquista, que burla do poder e do artistas, deles mesmos, da transcendência da arte, em que pese a sua implicação pessoal nessa atividade, esse humor tinha uma carga iconoclasta e rebelde que os mantêm vivos. Ademais, o dadá era ação, gesto, absurdo. Suas provocações os fazem mais próximos de nós, simpáticos, mesmo que, às vezes, inconsequentes, como naquele glorioso trabalho de Duchamp e Ray quando rodaram um filme que recolhe exclusivamente os momentos em que Man Ray, com maestria, acaricia a xoxota da baronesa Elsa von Freitag-Loringhoven.

Imaginosos, rebeldes, iconoclastas, talvez inúteis, mas não por isso menos atrativos aos nossos olhares, os dadaístas traficavam com a arte e com a liberdade, detestavam a idéia convencional de beleza, lutavam contra todos, jogavam com a provocação constante, negando ser possível a liberdade do ser humano se não fosse expressão da anarquia mais absoluta, da ação sem causa. Retorno à razão é pura obscuridade, e a arte, “um produto farmacêutico para imbecis”. “Não reconhecemos nenhuma teoria”, escreveu Tzara. Picabia advertia: “Metam na cabeça: o progresso não existe”. Para eles, tudo era arte, provocação, uma grande mentira, e o faziam talvez pensando no verso de Vallejo[12], me gustará vivir siempre, así fuese de barriga.[13] Duchamp, fiel a si mesmo, estava seguro de que a arte morava nas lixeiras e de que a vida não tinha sentido, porque era apenas uma extravagante construção onde os seres humanos, pese o empenho racionalista e classificador do pensamento científico, se movem sem saber que tudo é absurdo.

[ver o filme Le Retour A La Raison, de Man Ray, 1923]

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Francis-Marie Martinez Picabia (Paris, 28 de janeiro de 1879 - id., 30 de novembro de 1953); Henri Robert Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, 28 de julho de 1887 - Neuilly-sur-Seine, 2 de outubro de 1968; foi cidadão dos EUA a partir de 1955); Man Ray [Emanuel Radzitsky] (Filadélfia, 27 de agosto de 1890 - Paris, 18 de novembro de 1976).
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Tradução e notas: Mario Drumond

[1] Poeta cubano (1902-1989), sua obra, calcada nas experiências vanguardistas da década de 1920, caracteriza-se pela busca de uma linguagem que fosse a “expresión auténtica para una cultura mulata, la propia de un país mulato como él mismo, y manifestó una preocupación social que se fue acentuando con el paso de los años”, conforme biografia publicada pela Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile, na página http://www.los-poetas.com/c/bioguillen.htm.
[2] Salão de Outono, criado em 1903 por artistas como Rouault, Matisse e outros, em contraposição ao Salão de Paris, onde pontificava a produção de arte ” oficial” e acadêmica. Jacques Villon, irmão de Marcel Duchamp, participou da exposição inaugural com pinturas e também como organizador da seção de gravuras. [3] Roché é autor da novela Jules e Jim, em que se baseou Truffaut para rodar o filme de mesmo nome.
[4] pensador anarquista catalão.
[5] com o título A Fonte e assinado pelo pseudônimo R. Mutt.
[6] referência a um famoso auto-retrato pintado pela artista, que foi também musa e mulher fatal do período art-deco em Paris.
[7] pintor alemão do século XVI, famoso por seus nus.
[8] O tradutor tem outra tese a respeito da Roda que, apesar de ainda não a ter escrito como tal, está lançada em sua obra de ficção intitulada Dans L’Air – A via Santos-Dumont ou Santos-Dumont – O Filme.
[9] corte de cabelo.
[10] artista alemão, Joseph Beuys (1921-1986), foi influente nos anos 60 por suas posturas libertárias.
[11] alemão, Ernst Gombrich (1909 – 2001) é considerado entre os mais importantes críticos e historiadores de arte da Europa.
[12] peruano, Cesar Vallejo (1892 – 1938) é reconhecido entre os grandes poetas hispânicos do século 20.
[13] “Queria viver para sempre, mas vivi de barriga”, numa tradução livre. “Viver de barriga” é uma expressão que em espanhol significa vida que não tem sentido nem pode tê-lo; insignificância.

Carta aos nascidos em maio

Carlos Drummond de Andrade


Amigos e amigas que nascestes em maio:

Estas letras e este autor aqui estão simplesmente para se integrarem na poesia dessa circunstância e avivá-la em vós, se acaso vai murchando, como sugeri-la a todos os outros seres, infortunados seres que nasceram em março, em julho, em novembro. Porque vosso nascimento é pura canção, mesmo que sejais economistas, deputados, capitães-de-corveta. Uma predestinação lírica presidiu a vosso berço, e que tenhais enveredado por um caminho prático, onde a palavra maio significa apenas assembléia-geral de uma companhia de produtos químicos, não tem a menor importância: estais marcados de maio, carregais convosco, no canal de vossas veias, invisível, incapturável, imperturbável e aliciante, o princípio de maio. E ele jamais permitirá que vos tomem por um simples homem de outubro, e na vossa miúda e radiante biografia há de sempre insinuar a nota íntima, cristalina e melodiosa, de um pequeno acidente feliz, individualizadora do destino humano.

Maio sois e maio continuareis. O uso grosseiro de vossa vida não lhe corromperá de todo a limpidez original; se um dia matardes, se vos venderdes à política, se vos tornardes a vergonha de vossa pátria, ainda assim o lado maio de vossa fisionomia continuará indelével, e fará com que se murmure: "Coitado! apesar de tudo, nasceu em maio." E tu nasceste em maio – assinala o poeta ao fim do canto em que celebra o mês especial, assim como aquele que se inclinou diante do recém-nascido marcado pelos deuses, afiançando: Tu Marcellus eris. Por quê?

Decerto não sabeis bem por quê, mas sentimentalmente o apreendeis, e, homem ou mulher, os nascidos em maio caminham ao peso de uma carga suave – uma andorinha não pesaria menos - , que é o pressentimento, a intuição de participarem de um segredo atmosférico, pois ele está gravado, em hieróglifos, no ar, e no vento perpassa. "Nós os de maio..." – tendes o direito de sublimar, em face da mesquinha situação de nós outros, os do resto do ano (exceto os da segunda quinzena de dezembro, é claro!). E aqui ouso afirmar que vosso segredo é meio-pagão, meio–religioso, de tal modo as coisas se baralham no mundo, e os mistérios se prolongam e se entrelaçam. Porque há em maio dois meses: o mês de Maria, e o mês de maio propriamente dito. Se sois cristãos romanos, maio bate sinos na vossa infância ou na vossa madureza, e aspirais o incenso, entoais o Janua Coeli, Turris Eburnea e não sei que mais invocações encantatórias, e vos ajoelhais, e assistis à coroação da Virgem, se não a coroais vós mesmos, com a mão antiga e branca que nasce de súbito na ponta de vossos braços adultos. Mas, se não sois cristãos, não faz mal, maio ainda é festa, e festa foi sempre, desde o velho mundo latino, que o consagrava a Apolo e lhe punha à cabeça uma cesta de flores. Apolo, flores, fim do cruel inverno, irradiação da primavera, procissão de palmas verdes, enfeites de casa com verde, tudo verde, verde, verde, e esse ramo florido e enguirlandado que na Idade Média o amigo ia plantar à porta da casa do amigo, a 1º de maio, e que se chamava maio, e que sugere ao meu austero dicionarista Caldas Aulette esta expressão para definir um sujeito todo enfeitado: "Parecia mesmo um maio". Como sugeriu a Camões, em momento de ternura, o doce verso:

Só para meu amor é sempre MAYO.

De resto, o segundo maio, o mariano – em que não desfaço, tanto lhe devo eu próprio em evocações e sensações artísticas depositadas no fundo de meu pobre materialismo -, só nasceu mesmo no século XVIII, quando o padre jesuíta Lalomia teve a idéia de transformar paganismo em cristianismo (muitos de nossos santos, Deus me perdoe, guardam a sombra de divindades ou entidades pagãs, a julgarmos pelo caso de São Sátiro, contado por Anatole France), e dedicou o mês a Nossa Senhora, compondo em 1785 Il Mese de Maggio consacrato alle gloria della gran Madre de Dio. Maio cristianizou-se, porém muito de sua magia continua ligada ao reverdecimento espontâneo das árvores, ao desatar das águas presas durante 89 dias e 2 horas, na deliciosa falsa contagem dos meteorologistas, às expansões da terra que penetrou em um novo ciclo e aconselha bichos, gentes e plantas a que amem, amem desbragadamente. Não estou delirando, ó criaturas de maio. Tudo isto se passa em outro hemisfério, mas também por estas bandas austrais maio é primavera, senão na natureza, pelo menos em estado de espírito, em concordância íntima de valores, em consubstanciações vaporosas de que cada um de nós adquire a fórmula, a qual, ó eleitos, nem sequer precisais aprender, pois a recebestes com o primeiro vagido. Concordo, sem repugnância, em que o nosso mês de maio cai no fim do outono. Custa-me pouco aceitar o outono brasileiro, se o vejo, como aqui no Rio, de um azul diáfano, arrepiado por um friozinho que enxuga e perfuma o suor das coisas, tristes coisas urbanas usadas pelo sol do trópico, e por ele restituídas à sua prístina pureza. Não há tempo mais leve, caricioso, humano e coloquial do que este maio carioca, revestido ou não de prestígio mundano, porque sorri tanto aos freqüentadores de concertos como aos homens sentados em bancos de jardim público, ao passageiro do bonde Freguesia, ao remador, à datilógrafa do Serviço de Proteção aos Índios, ao médico do Pronto-Socorro, ao Senador Melo Viana, aos meninos da Escola Cócio Barcelos, aos pedreiros construindo edifícios, à massa palpitante de uma cidade feita de subúrbios que transbordam até à Avenida Rio Branco: maio dá para todos, reparte-se amorosamente entre homens sofredores e homens de boas roupas, como uma conciliação meteorológica, um arco-íris pairando sobre as contradições da cidade. Se bem que, de coração, ele se volte mais, num enternecimento cúmplice, para aquela parte do povo que sua no rude batente, e a que é dedicado, desde 1890, o seu dia inaugural.

Mês de Nossa Senhora coroada de rosas, e de operários que morrem pela causa de oito horas de trabalho no mundo, frio mês das montanhas mineiras, nostalgia de namoradas e rezas, cartuchos de amêndoas que a irmã trazia da coroação na Matriz, que era um grande navio iluminado, conversas no adro, à espera do leilão de prendas, vagos estremecimentos de poesia, formas infantis de um sonho que mais tarde seria inquietação e carinho franjado de ironia – tudo isso vai brotando desta caneta comercial com que escrevo, e baila no ar e me penetra – tudo isso é vosso, é a própria substância de que se tece vossa vida, ó nascidos e bem-aventurados em maio! Para quem esta carta é colocada na mala irreal de uma posta feérica.


CARTA AOS NASCIDOS EM MAIO
Carlos Drummond de Andrade

in Passeios da Ilha, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1952 (coletânea de artigos do autor publicados aos domingos no Suplemento Literário do Correio da Manhã)

Publicação e ortografia conforme, ipsis litteris, Carlos Drummond de Andrade – Poesia completa e Prosa, José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1973.

Capa: Mario Drumond, a partir de calcografia do cartógrafo John Flamsteed [Taurus constellation, in Atlas Coelestis, Londres, 1729] e foto feita por telescópio VLT (8,2 metros) da nebulosa remanescente de uma explosão ocorrida na constelação de Touro, no ano de 1504 [Foto ESO - 2006].