Capítulo 2

Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque.

Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma névoa de spray mal cheiroso.

Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”, só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em levá-lo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A.

Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria.

Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela, onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois, passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho trazia na sacola.

Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois (Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados.

Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França), mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá.

Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho, pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas, sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!”

Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disse-lhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica! Bye and good luck!”

Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro, homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em lançamento.

A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo; quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas que tomou até chegar ali, exausto e bufando.

Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então, difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo, se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele. Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca, tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação, a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas.

Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação, acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou: GUANTÂNAMO.

Capítulo 3