Capítulo 7

Um maço de 22 folhas de papel perfuradas e amarradas com barbante, encapado com cartolina parda como nos processos judiciais, foi retirado do temível envelope pela mãe do jovem missivista.

Na capa, em caneta hidrocor vermelha com a letra do autor, vinha o título do documento: “Declaração, feita de memória e próprio punho pelo brasileiro José Eustáquio Raghid Varela, do que lhe ocorreu no período de 11 de setembro de 2001 até a presente data”. A seguir, o mesmo título parecia a dona Lourdes vir repetido em inglês e em árabe por outra caligrafia que não a do filho. Mas ela arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca, estupefata, quando leu, em português, igualmente seguido pelos dois outros idiomas, o local e data do escrito: “Bagdá, 24 de dezembro de 2004.”

“Santos Deus!” – exclamou em voz alta, sem ser capaz de se conter por tamanha surpresa.

Para o leitor, que conheceu o resumo de parte do relato nos dois primeiros capítulos desta história, a surpresa não deve ter sido tão grande. Sabemos do vínculo macabro que há entre aquele pedaço usurpado à ilha de Cuba e a infeliz cidade referida naquela datação, inclusive por ela abrigar uma prisão tão terrivelmente célebre como Abu Ghraib.

Porém, para a pobre mãe... nem se diga! Ela se preparara da melhor maneira que lhe fora possível. Tomara um bom banho, café da manhã reforçado com frutas e fora à missa das seis rezar pela alma do filho e pedir forças a Deus para suportar o desafio. Sabia que naquela hora a missa não seria de padre Antonio e não encontraria conhecidos que lhe fizessem desconcentrar-se da missão que havia imposto a si mesma. Só ao retornar - sentada na mesma cadeira da mesa de jantar em que abrira os outros envelopes é que, munida de tesoura, uma caixa de lenços de papel que trouxera da drogaria e com os óculos bem limpos e ajustados -, abriu o envelope.

Das 22 folhas, 19 estavam completamente preenchidas nos dois lados pelo texto principal, feito em letra miúda e com um mínimo de espaço entre linhas, mas no capricho, com caneta esferográfica de cor verde (os anteriores eram com o mesmo tipo de caneta de cor azul). Eram numeradas por folha, na parte direita superior da página de frente de cada uma, sempre com os respectivos números colocados dentro de um pequeno círculo.

O texto começava pela identificação do declarante, a mais completa que lhe fora possível fazer de memória: “Eu, José Eustáquio Raghid Varela, brasileiro, solteiro, etc... declaro, a quem interessar possa, o seguinte:”. Seguia-se o texto corrido, parágrafo por parágrafo, assinalados por uma pequena entrada na primeira linha, sem mais cesuras nem divisões destacadas. O conteúdo, rigorosamente composto em ordem cronológica e, ao que parece, com supervisão ou assessoramento de quem possuía domínio de normas jurídicas, inclusive com a menção de datas e horas certas ou prováveis em alguns dos parágrafos, poderia ser dividido em três grandes partes fundamentais, como a seguir veremos. As três últimas folhas eram de anexos ao texto principal, sobre os quais saberemos mais à frente.

A primeira parte continha o relato detalhado desde a saída de Brasília até a chegada na prisão de Guantânamo, sobre o qual já sabemos o suficiente para seguirmos em nossa história. Ocupava quase quatro folhas inteiras (sete páginas e três quartos).

A segunda parte, a mais volumosa, ocupando quase oito folhas (15 páginas e tanto), continha o relato detalhado da estadia do desventurado autor naquele inferno sem poesia. Um inferno em que o maior castigo, segundo ele, era o de não poder morrer nem ficar louco. Avançada tecnologia médica, farmacêutica e hospitalar era aplicada aos prisioneiros para que as torturas obtivessem o máximo de sofrimento possível sem que a vítima ultrapassasse os dois limites. Se isto ocorresse seria, para os algozes, uma falha tão grave quanto a fuga do prisioneiro. Devemos saltar toda essa parte. Deixemos linhas como tais para os processos que haverão de correr nos tribunais existentes e futuros e que, com os auspícios de uma outra realidade mais favorável à vida humana nesta Terra, farão punir com Justiça esses criminosos desalmados e colocar os responsáveis diretos e indiretos por tamanhas atrocidades em seus devidos lugares (ou infernos).

A terceira e última parte era o relato de Taquinho (dona Lourdes voltou a lembrar-se dele pelo apelido, tão logo começou a leitura) a partir do momento em que acordou com o mesmo gosto ruim na boca e quase tão desorientado quando se descobriu numa lancha militar indo para Guantânamo. Desta outra vez, a sensação era a de estar na poltrona muito reclinada de uma aeronave, em pleno vôo, que o levava para longe do inferno no qual, calculara depois, perdera quase três anos de sua jovem existência. Esta parte contém o que poderia o autor relatar da história que vamos descrever a partir do próximo capítulo, pois, neste, ainda temos de dar espaço aos anexos e um tempo para dona Lourdes, que demorou mais de vinte horas seguidas para ler tudo o que ali havia para ser lido em nosso idioma. A caixa de lenços de papel lhe fora suficiente só para as três primeiras horas de leitura e, antes da metade da segunda parte, com certeza a mais difícil para ela, já se valera de todos os lenços de pano que possuía, os quais havia disposto ao seu lado, numa cestinha de costura, quando se acabaram os de papel.

Deixemos só a pobre senhora em seu pranto imerecido, com a nossa solidariedade e pesar, e continuemos, pois devemos também preparar-nos para a penosa travessia, ainda que nunca tão difícil para nós quanto o fora para ela.

No primeiro anexo havia uma luminosa reflexão ao mesmo tempo filosófica e confessional do próprio Taquinho, quase poética, a respeito de tudo o que se passara com ele e sobre a decisão que havia tomado para o futuro imediato. Nele, consumiu a página de frente e dois terços do verso da folha que lhe coube.

O segundo era um depoimento do preceptor de Taquinho na sua conversão, ou melhor, sua iniciação na religião muçulmana, de corte sunita. Apesar do batismo e a cultura cristã de origem, o novo discípulo do Islã confessara ao preceptor que jamais se iniciara ou praticara no credo cristão, exceto quando criança e por indução de sua mãe, considerando-se, mesmo, um completo ignorante de quase tudo a respeito. Vinha escrito em perfeito Português, quase castiço, com encômios sinceros ao discípulo, pois não disfarçavam a admiração do preceptor pelas virtudes que encontrara no espírito e na vida interior do iniciado. Assinava com o codinome Shakir (grato, agradecido) e codinominava seu discípulo de Faraj (cura, melhoria), significados estes que informou também entre parênteses ao mencioná-los pela primeira vez no corpo do texto. Conciso e preciso, o texto é de autoria de quem domina plenamente a linguagem escrita e ocupava, bem diagramado, quase toda a página de frente com letras boas, de calígrafo, e linhas bem espaçadas

O terceiro trazia os atestados de próprio punho de duas testemunhas que ouviram todo o texto lido pelo próprio declarante e traduzido, simultaneamente, para o árabe por seu preceptor, bem como o viram escrevendo o documento em diversas ocasiões. Um deles era escrito em árabe e o outro em bom Português-Brasileiro; ambos vertidos para o inglês. Por razões de segurança, as testemunhas não se identificavam, exceto por rubricas ilegíveis, mas se comprometiam a fazê-lo diante de tribunais e mediante compromisso de sigilo judicial. Os atestados, e respectivas versões para o inglês, vinham escritos em letras miúdas e apertadas entrelinhas, ocupando só a página de frente da folha.

Os anexos foram escritos em caneta esferográfica de cor verde, exceto o do que se codinominava Shakir, que era escrito também na cor verde, mas a caneta tinteiro, no pleno domínio de seu manuseio, o que se podia perceber pelo sofisticado traçado das letras, das serifas e do uso dos traços finos e grossos de requintado calígrafo.

Capítulo 8