Capítulo 32

O atentado de três de janeiro de 2005, com a violenta explosão no restaurante dos oficiais aliados, na Zona Verde, em Bagdá, mantido sob rigoroso sigilo quanto a seu alcance e força letal, foi considerado pela Inteligência dos EUA como o maior até então sofrido por suas forças de guerra depois do atentado de Beirute contra uma de suas bases, em 23 de outubro de 1983, onde foram reconhecidas as baixas mortais de 241 marines.

A mídia controlada pelas forças invasoras teve de divulgar alguma coisa, pois a explosão foi de tal ordem e em tal lugar que não poderia ser explicada de outra forma senão pelo reconhecimento de que fora um “atentado terrorista”. As primeiras informações não davam como certo se fora um “atentado suicida” ou se fora um ataque de mísseis sobre o local. As cifras publicadas falavam de cerca de 20 mortos e perto de uma centena de feridos. Nunca foram divulgados os números exatos daquela ocorrência, e o assunto só foi manchete por três ou quatro dias, até que se publicou um comunicado da “organização terrorista Al Qaeda” assumindo a responsabilidade pelo ataque, após o que sumiu dos noticiários. Nem os motores de busca na Internet sob controle do Pentágono foram poupados; todas as páginas que informaram sobre aquele acontecimento foram suprimidas da rede.

Mas a verdade é que as pelo menos 218 pessoas atingidas pela explosão (o total poderia chegar a 223), e, logo em seguida, por uma chuva de mísseis, quase todas estavam dentro do restaurante e algumas poucas nas imediações. Apenas 46 foram recolhidas com vida dos escombros e, destas, somente 12 sobreviveram com graves e irreparáveis mutilações e lesões em várias partes do corpo. Ao todo, e com certeza forense, foram mortos 187 oficiais de elite, nove funcionários militares e dez civis. Entre os sobreviventes, cinco civis e sete militares. Cinco outras pessoas são dadas como desaparecidas, porém não houve comprová-las como vítimas do atentado.

Tais números poderiam ter sido maiores não fosse a localização do edifício do restaurante num pequeno parque, a uma boa distância dos prédios mais próximos, e o horário de almoço, com pouca gente circulando pelo parque ou nas imediações. Assim mesmo, o parque ficou quase totalmente destruído e as construções próximas sofreram danos consideráveis. Muitos dos habitantes de edifícios fronteiriços ao parque tiveram traumas psíquicos e ferimentos de maior ou menor gravidade.

As investigações surpreenderam os serviços de Inteligência das “forças aliadas” quando começaram a surgir informes de que fora utilizado um explosivo líquido pelo “terrorista suicida”. Um garçon civil - contratado para a ocasião e única pessoa presente no recinto da explosão que, por milagre, sobrevivera, mesmo tendo perdido um braço e uma perna -, descreveu o que vira no “suicida”, bem de perto. Tal tipo de explosivo era um dos segredos mais bem guardados e vigiados da indústria bélica dos EUA e não poderia ter sido vazado nem fornecido por ela. Então, alguém mais possuía essa tecnologia e não se tinha a menor idéia de quem nem de como ela fora fornecida aos mentores do atentado.

Outro mistério era o de que o DNA do principal suspeito, um jovem deficiente físico que trabalhava como serviçal para o empresário do restaurante, não fora encontrado em lugar nenhum nos escombros da catástrofe, apesar de as gravações do sistema de segurança o terem registrado, com nitidez, transportando um lote de garrafas para o andar do restaurante, minutos antes da explosão. As câmeras internas do andar de cima não eram bem posicionadas e só uma delas gravou a sua entrada no recinto, porém, pelas costas, andando ao lado do buffet e em direção à coluna central do edifício. Ali, num gesto desafiador, ao que parece feito de propósito para uma das outras câmeras de segurança, detonou o explosivo, logo após dar uns gritos em língua inglesa, mas que não foram gravados com nitidez suficiente em meio à balbúrdia que tomou conta do local para que se pudesse ouvir ou decifrar o que dissera, a não ser as duas últimas palavras: “... save you”. Neste ponto, surge novo mistério: a deficiência física do jovem serviçal era exatamente a impossibilidade de falar; de acordo com a sua ficha médica, era mudo por ter tido a língua decepada muitos anos antes. Suspeita-se que ele transportava algum dispositivo de voz gravada, pois o garçon sobrevivente, que conhecia bem Khalid, não teve a menor dúvida em apontá-lo como autor do atentado.

Quanto aos organizadores do feito, abria-se outra difícil incógnita. A resistência poucas vezes atuara belicamente nas áreas centrais de Bagdá. Escaramuças eram registradas com freqüência nos arredores e na estrada do aeroporto, mas os atentados com explosivos que se produziram dentro da cidade no último ano foram obras de serviços secretos aliados. A Inteligência não tinha pistas dos responsáveis nem sabia por onde começar a procurá-los. Possuía vídeos de segurança da mãe do suspeito que foram obtidos na portaria da Zona Verde, mas ela sempre usava hábitos longos, capuz e véu, de modo que sequer podiam descrevê-la. Ela havia desaparecido com seus pertences da residência do empresário, também morto no atentado, e era a única pessoa que poderia informar algo de útil às investigações.

Contudo, muito para além das baixas sofridas e das investigações, o Pentágono teve de considerar a derrota estratégica que pôs em risco todo o investimento bélico, político e econômico feito até então naquela guerra, obrigando-o a rever a totalidade do planejamento futuro e as suas ambições de conquistas.

A resistência iraquiana se constituíra num empecilho muito acima do calculado pelas forças invasoras, e muito superior ao do exército regular de Sadham Husseim. Este, logo ficara claro antes mesmo da ocupação de Bagdá, era apenas um disfarce para iludi-las. Só depois da invasão perceberam que os preparativos do Iraque foram feitos basicamente na estruturação e fortalecimento militares da resistência para a guerra assimétrica. Quando George W. Bush declarou o “fim da guerra”, três meses depois de começada, nem um militar no front acreditou nele. Naquele momento, todos tinham experiência de combate com a resistência mais que suficiente para saberem que a guerra apenas começava e não seria nada fácil.

Entre as principais características daquela força de resistência estavam a surpreendente capilaridade de sua organização em todo o país, a inescrutabilidade de seus recursos e métodos, e, principalmente, a invisibilidade de seu comando central. Foram precisos intensos estudos dos melhores especialistas e o uso de avançada tecnologia satelital e de informática para desvendar a aparente anarquia das movimentações brownianas de suas ações bélicas, distribuídas por todo o teatro da guerra. Descobriu-se que eram, na verdade, táticas de uma sofisticada e bem azeitada estratégia de guerrilha cuja organização era, com grande chance de certeza, centralizada em Bagdá. De início, pensaram que seria em Fallujah, mas, depois do maciço bombardeio naquela cidade mudaram de idéia. Porém, isto permanece como uma conclusão teórica. Na prática, por mais que se tentasse desvendar como e onde tão eficaz coordenação se produzia na capital, sem nunca ter sido sequer ameaçada nem bloqueada, tudo resultou inútil. Os esforços nisto despendidos, com recursos ilimitados, sequer chegaram na ante-sala daquele Estado Maior invisível.

As prisões de Abu Ghraib, Guantânamo, Kandahar e Diego Garcia eram lotadas de guerrilheiros, militantes e combatentes civis iraquianos que só conheciam o último ou o penúltimo segmento dos tentáculos dessa incrível organização militar. Um prisioneiro feito em batalha só sabia dizer quem lhe havia entregue sua arma e este, por sua vez, que havia apanhado as armas num determinado lugar; um porão ou garagem de um prédio abandonado, um furgão estacionado num beco, um depósito de cargas ou de mercadorias.

As ordens chegavam a eles por diferentes meios, podia ser um menino de recados ou um office-boy, um anúncio de jornal, por celular e até pelo correio. Dos segmentos seguintes, de quem deixara lá as armas, as munições e os explosivos, quem enviara as ordens e as coordenadas, não se tinha a menor idéia. Mil códigos e costumes cifrados, em que se misturam religião, tradições, hábitos e a língua árabe garantiam a segurança das remessas e a certificação das mensagens que iam rapidamente do comando central até os extremos mais distantes da organização, passando sem problemas por todas as barreiras e unidades de vigilância dispostos em terra, na capital e em todo o país, no espaço aéreo e até no espaço sideral (satélites).

A impressão era a de que toda a população do país, inclusive certos setores e próceres que se diziam ou se faziam de aliados aos invasores, tinha participação ativa na resistência. Foram infrutíferas as tentativas da Inteligência em infiltrá-la. No máximo, lograram algumas apreensões de velhos arsenais e, não raro, a prisão de reles criminosos que lhes passavam como “líderes da resistência”, e eram, na verdade, pessoas que a própria resistência queria descartar. Essa carência de informações confiáveis resultava na insegurança das tropas aliadas e na matança indiscriminada e desnecessária de civis, fatores que estavam minando perigosamente a moral das tropas e a opinião pública mundial, apesar do controle quase absoluto que o comando aliado possuía dos meios de comunicação de grande alcance em todo o mundo.

Sem conhecer o inimigo mais profundamente era difícil chegar a algum lugar. Além disso, os segmentos centrais da teia da resistência eram autodestrutíveis e extremamente perigosos. Seguir um sinal suspeito de telefone celular poderia significar uma armadilha mortal. Outro celular era colocado no caminho pronto para detonar um explosivo quando passassem. Apreender ou revistar um veículo, igualmente. Vendo-se sem saída, um militante envolvido com os setores internos e mais próximos aos grandes segredos estava bem preparado e nunca vacilava no acionar de um dispositivo explosivo que sempre trazia consigo para a eventualidade. E levava para a morte os que estivessem com ele e em torno dele sem titubear, ainda que entre eles se encontrasse a própria mãe ou seus filhos.

Depois de uma série de estudos e reuniões de cúpula, a solução recomendada foi a de preparar um grupo de oficiais de elite exclusivamente para atuar em Bagdá no que ficou sendo chamado de “front cultural”. Um grupo composto de profissionais experientes que fossem capazes de penetrar o ambiente e a atmosfera cultural própria daquele povo, que não necessitasse de intérpretes para dialogar e se entender com os iraquianos, e que estivesse a par de seus costumes, suas astúcias, seus códigos, seus métodos.

Duzentos homens e mulheres foram escolhidos a dedo para a missão, entre os melhores dos melhores. Durante quase três anos se enclausuraram em local secreto e sob o mais rigoroso sigilo para um intenso treinamento dado por instrutores israelenses e muçulmanos sauditas e jordanianos, estes últimos tidos como aliados confiáveis pelo Pentágono, mas mantidos sob severa vigilância durante todo o período e depois eliminados secretamente.

Todo este contingente super preparado sequer entrou em ação! Fora um erro inadmissível reunir 187 de seus componentes num só lugar, em plena Bagdá, pensando estar disfarçando-os de oficiais comuns em eventos de rotina. E os 13 outros foram assassinados ou seqüestrados por profissionais no mesmo dia, em diferentes lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Sete foram encontrados mortos e seis estão desaparecidos, provavelmente mortos também. Isto dava outra certeza terrível à Inteligência das forças invasoras: a resistência iraquiana a infiltrara até a medula. Tal certeza comprometia a hierarquia militar aliada de ponta a ponta, incluindo o alto comando; até o comandante-em-chefe ficava sob suspeição.

De fato, daquela data em diante, foram notáveis o recuo do poder invasor e o avanço das forças de resistência, além da perda de viabilidade da invasão do Irã e da derrota iminente no Afeganistão. Caíram muitos altos oficiais aliados e todo o alto comando militar dos EUA no Iraque, até mesmo o comandante-em-chefe, almirante William Fallon. Contudo, e ao que se saiba, jamais se desvendou a identidade de um só quadro infiltrado.

As “forças aliadas” foram perdendo terreno em todo o Iraque até o ponto em que, hoje, negociam uma retirada “honrosa”, mas em dificílimas condições. Os planos de redesenho do mapa político do Oriente Médio foram definitivamente para o espaço. E a hegemonia militar e econômica dos EUA passou a ser contestada e agora se dissolve em frangalhos.

Estava o autor desta história escrevendo estas linhas quando ocorreu o episódio da sapatada no presidente dos EUA, George W. Bush, em plena Bagdá. Tal foi a repercussão do fato que, à primeira vista, parece que tudo o que se podia dizer sobre ele já foi dito. Contudo, este autor não viu um só comentário a respeito da capacidade e da competência da resistência iraquiana em executá-lo com tamanho sucesso. Acreditar que aquela fora uma ação isolada de um audacioso ou maluco é ser demasiadamente ingênuo. É que o alvo prioritário do ato nunca fora o rosto do famigerado presidente da nação invasora, mas, sim, a mídia hegemônica a seu serviço, e este foi atingido em cheio.

O jornalista que o executou deve ser um Mujahid bem treinado e, pelo enorme risco de sua missão, estava preparado até para morrer. O brilhantismo desta operação do Jihad consiste em ter-se infiltrado no anel de segurança mais próximo do chefe de Estado mais bem protegido do planeta no momento em que este dava entrevista coletiva, ao vivo, para a mídia mundial a seu serviço sem a preocupação do filtro do delay, entre o momento real e o da transmissão, que normalmente é usado nestes casos por razões de segurança. Este cuidado não foi tomado daquela feita, e a resistência iraquiana estava lá, ciente disto e pronta para agir e se aproveitar outra vez do erro do inimigo. No momento exato em que ocorreu o ato, a sua imagem em vídeo era reproduzida mundo afora, sem nenhuma chance de bloqueio, e com ótima qualidade.

Este último dado, a ótima qualidade do vídeo, é importante a se observar e a se considerar com mais atenção. Entre as dezenas de câmeras presentes, a que melhor registrou o ato parecia estar ensaiada para ele. Estava muito bem posicionada, cobriu com precisão a primeira sapatada e, em seguida, abriu o ângulo exata e coordenadamente, sem tremor ou vacilo causados pela surpresa, para cobrir a segunda com perfeição absoluta.

Se no Vietnam a imagem do helicóptero decolando da embaixada dos EUA em Saigon, com pessoas penduradas nele, no desespero da fuga, foi a do encerramento humilhante da barbaridade que lá, então perpetraram; no Iraque, a imagem das sapatadas no tirano fundamentalista ocidental, responsável pelo regime mais cruel e genocida que se registrou em todos os tempos, ficará para a história como a que dá início ao fechamento, igualmente humilhante, do ciclo de atrocidades que ali e em boa parte do mundo perpetraram durante o mandato absolutista daquele facínora.

São signos que marcam o crepúsculo de um império cujo esplendor não foi mais que uma fraude imposta e virtualizada pela força do terror e através dos meios de comunicação, numa época que os historiadores futuros poderão considerar como de obscurantismo, horror e grandes desgraças; muito semelhante, em essência, ao período conhecido como Idade Média. Poderá a história batizá-la, no futuro, de Idade Mídia.

Último capítulo