Capítulo 18

Uma outra preocupação foi colocada pelo Mujahid ainda naquela reunião: os destinos de Khalid e sua mãe. Foi então informado de que ambos seriam transladados para o sul do país, onde integrariam as forças de resistência na região. Antes mesmo de Faraj atingir os objetivos da missão, eles estariam fora de Bagdá. Khalid seria responsabilizado pelo atentado, mas seria dado como morto. Sua mãe com certeza passaria a ser procurada. Mas só o amo e o filho sabiam como era o rosto dela, pois ela não se deixava ver por estranhos sem o véu ou a burka, como era o hábito de seu costume tribal. E o empresário não deverá sobreviver para ajudar a procurá-la.

Enfim, discutidos os detalhes e aprovado o plano, estabeleceu-se que a resistência iria providenciar um local secreto para os ensaios e treinamentos e, quando o tivesse pronto, Faraj seria transferido para lá, onde ficaria até a execução final da operação. O prazo estabelecido para esses preparativos foi de 15 dias.

Nesse período, ao Mujahid competia cuidar da saúde e preparar-se espiritual, moral e fisicamente para o evento que o tornaria herói nacional, mártir imortalizado pela causa e pelo mundo islâmicos, além de predileto de Deus, que o receberia sem pecados e com as graças eternas. Como cerimônia final, o sufi entoou comovido e longamente o Azan (chamado à oração), como sempre com a voz afinada e impecável. Sob a liderança dele, todos juntos e genuflexos oraram:

"Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros." (49ª Surata, versículo 13)

Terminada a reunião, o sufi levou Faraj até a biblioteca. Bem acomodados nos almofadões, fumaram durante algum tempo, em silêncio, um narguilé que Taquinho, pela primeira vez, preparou para o sufi. Este quebrou o silêncio elogiando a habilidade com que ele se saíra naquele preparo e a qualidade da essência utilizada. Faraj replicou que a essência ele devia a Zahirah e agradeceu o elogio. O sufi disse-lhe que a casa agora era do Mujahid e que, até o último dia em que lá permanecesse, estava à disposição para o que quisesse ou desejasse. O discípulo retrucou que abolira a palavra desejo de seu vocabulário e que nada mais queria além da companhia do sufi e seus filhos nestes últimos dias como hóspede daquela nobre casa, tal como as gozara desde que nela fora admitido. Seu único plano era o de terminar os seus escritos, com a aprovação do sufi, e deixaria para datá-los e lacrá-los em envelopes no último dia de sua estadia ali.

O sufi então se levantou e pediu a Faraj que o acompanhasse, ia lhe mostrar um segredo. De uma gaveta de sua mesa de trabalho ele retirou um dispositivo de controle remoto, no qual digitou uma senha. Uma das estantes de livros se moveu lateralmente e, por detrás dela a parede sólida deslocou-se em ângulo, abrindo uma passagem. O sufi fez um gesto com a mão convidando Taquinho a transpor a passagem. Ao entrarem no cômodo secreto, o sufi acionou o mecanismo para que se fechasse a passagem.

O jovem valadarense não acreditava no que estava diante de seus olhos. Pensava que aquilo só existia na imaginação dos que liam as “Mil e uma noites”. Era o tesouro da tradição familiar do sufi, que vem sendo conservado e ampliado desde tempos muito antigos.

Uma das paredes exibia uma belíssima coleção de adagas, umas de ouro, outras de prata, sempre com punhos e bainhas cravejadas de pedras preciosas e com a gravação, em caracteres árabes, do selo da dinastia. Na parede em frente, exibia-se uma outra coleção, esta de escudos, armaduras, brasões europeus e outros troféus de guerra de semelhante riqueza de fatura, materiais e ornamentação. Outra parede ostentava uma vitrine, quase até o teto, com jóias, vasos, lanternas, cetros, narguilés e ricos objetos de épocas diversas, muitos dos quais o abismado visitante nem saberia dizer o que eram ou para que serviriam. No piso, forrado de tapetes indescritíveis, estavam dispostas quatro daquelas emblemáticas arcas cheias de moedas e peças de ouro e de prata, misturadas a gemas magníficas. Na quarta parede, descia, desde o teto, uma portentosa obra de tapeçaria muito antiga, toda tecida em fios de um azul celestial luminoso e sobre o qual era bordado, com fios de ouro, o tema de uma caravana no deserto. Ao seu pé, encostava-se um luxuoso gaveteiro feito em ébano, com umas trinta gavetas de pequena altura e grande largura, onde eram conservadas inúmeras coleções de diamantes de quilates diversos. O sufi abriu algumas gavetas dentro das quais brilhavam dezenas deles sobre o feltro negro, muitos enormes e fulgurantes como estrelas. De uma delas, o sufi colheu certa quantidade de pequenos diamantes, aquilatou-os na minúscula balança de precisão que ficava sobre o tampo do gaveteiro e os colocou num saquinho de couro que guardou no bolso do paletó.

- Estes vão para pagar uma remessa de armas e munições – explicou ao jovem.

O sufi voltou a acionar o controle remoto e fez abrir uma outra passagem, da mesma forma que a anterior, deslocando a parede em ângulo com a coluna lateral do cômodo.

- Agora é que vem o mais importante – falou ao jovem, já transpondo a passagem.

Ao penetrar o outro ambiente, bem maior que o primeiro, outra surpresa: uma vasta e superlotada biblioteca com livros, volumens, manuscritos, incunábulos, pergaminhos, papiros, gravuras, pinturas, aquarelas; todo um valiosíssimo acervo de obras raras de incalculável valor, muitas das quais seculares, da Idade de Ouro do Islã, nos primeiros séculos do nosso segundo milênio.

- Este é o nosso maior tesouro – falou o sufi: – Muitas dessas obras são propriedade da Biblioteca de Bagdá, que foi barbaramente depredada e incendiada pelos invasores, tal como, no passado, fizeram com a Biblioteca de Alexandria. E sempre em nome de Cristo. Usaram lança-chamas pensando que queimavam as obras primas da nossa cultura, mas destruíram apenas as cópias que pusemos lá, no lugar das originais.

Taquinho ia seguindo o sufi pelos estreitos corredores que se formavam entre as estantes abarrotadas até que chegaram a uma tribuna de pesada madeira sobre a qual se abria um livro espesso, de grande formato, todo confeccionado em delicado pergaminho.

- Este livro contém as crônicas escritas por meus ancestrais, os sufis que me antecederam nesta casa, desde que foi construída no século XII do calendário gregoriano – explicou Shakir – A técnica que usamos para escrever nestas páginas é a da escrita com pincel de um pêlo só e tinta de ouro verdadeiro. Nossa linhagem é de sufis calígrafos, e este é o terceiro volume do nosso livro. Estou escrevendo a crônica do meu tempo, e Fadil já foi aceito como apto para prossegui-la. Mas, antes, eu espero escrever mais algumas páginas; a próxima pretendo dedicá-la a você.

O jovem discípulo juntou as palmas das mãos e baixou a cabeça em sinal de gratidão.

- Esta casa – continuou o sufi – já foi ocupada por invasores em duas ocasiões no passado, mas, em ambas, eles não penetraram o segredo destes tesouros. Eles são de fundamental importância espiritual e material à nossa sobrevivência. Pela primeira vez, temos motivos para crer que os invasores possam descobri-los e isto significaria um dano irreparável para a causa islâmica. No projeto do inimigo estará a ocupação desta casa e, com as novas tecnologias, é possível que logrem desvendar a sua real configuração arquitetônica, ou seja, o que está por detrás das paredes da biblioteca e também nos porões subterrâneos, onde são mantidos itens estratégicos do arsenal da resistência. Trouxe-o aqui para que conhecesse mais a fundo e com objetividade o que está em jogo na sua missão.

Em seguida, o sufi fez o discípulo entrar numa espécie de oratório, construído como se fosse uma grande gaiola de madeira e localizado num canto do cômodo. Na verdade, era um elevador camuflado, e, com o acionar do controle remoto, começou a descer por entre paredes de concreto. A descida foi inesperadamente longa nos cálculos do jovem e, ao chegar no ponto inferior, uma porta se abriu e eles acessaram um mezanino de concreto armado. Dele, se descortinava a visão panorâmica de um complexo subterrâneo, muito bem iluminado, com inúmeros compartimentos abertos em arcos, onde se abrigavam fartos e diversificados arsenais.

Esperavam-os, ao lado da porta do elevador, dois homens armados com os quais o sufi trocou breves palavras, entregou a um deles o saquinho com os diamantes e dispensou-os. Muitos homens trabalhavam no local, era intensa a atividade naquele momento; um formigueiro humano. Taquinho viu chegar, sobre trilhos, uma composição ferroviária de vagonetes de transporte que empilhadeiras motorizadas iam enchendo com caixotes de munições, fuzis, obuses e mísseis. O sufi explicou-lhe que um túnel ligava aquele subterrâneo até outro sob um estádio de futebol que está sendo construído a cerca de dois quilômetros dali, por onde se dava vazão às cargas para as frentes de resistência. Eram distribuídas em veículos disfarçados de utilitários civis e por outros túneis que de lá se interligavam à rede de subterrâneos estrategicamente construídos sob toda a cidade e arredores, como um metrô secreto. Pelas mesmas vias, em sentido inverso, abastecia-se o arsenal. Estavam ambos, segundo informou o sufi, no principal arsenal e centro de logística da resistência para a região militar da capital do país.

Capítulo 19