Capítulo 1

Enquanto se ajeitava na poltrona, Taquinho não conseguia se conter de tanta felicidade e ria à toa consigo mesmo. Era a primeira vez que viajava de avião, fato que ampliava a emoção daquela viagem e coroava de sucesso cinco anos de batalhas e ralações. Fazia 23 anos justamente nesse dia que acabava de eleger como o mais feliz de sua vida, ao afivelar e apertar o cinto de segurança. Taquinho dera de presente a si mesmo a realização de um grande sonho: ele decolava de Brasília em vôo direto para Nova York, cidade que para ele era a capital do paraíso na Terra.

De lá não pretendia retornar tão cedo, tinha tudo planejado. É verdade que o sonho começara a ser acalentado bem antes; desde criança Taquinho alimentava sua admiração pelo país do hambúrguer e do hot dog, e nunca lhe faltou estímulo para isso, desde as primeiras revistas em quadrinhos, brinquedos, desenhos animados e jogos eletrônicos até as inúmeras mídias atuais, impressas e eletrônicas. Mas a data inicial de sua concretização ele atribuía ao dia em que completou 18 anos.

A partir de então, se tornou o dono de seu nariz e não precisava mais da assinatura dos pais para tomar decisões. De imediato, transferiu-se para o horário noturno de uma escola pública onde completou o curso secundário sem o menor esforço e decidiu que, se um dia ingressasse numa universidade, isto se daria nos EUA. Assim, o dinheiro que o pai enviava para pagar a escola particular ele guardava numa conta de poupança para o seu grande projeto. E tinha o dia inteiro disponível para ralar de bicicleta, fazendo entregas e serviços de office-boy, com o que apurava um bom dinheiro que também ia para a mesma conta.

Taquinho chegou a evitar namoradas para não gastar o dinheiro que economizava e não comprometer o futuro de seu projeto. Quase não gastava de suas economias, e tinha de se conter para ir uma só vez por semana ao McDonald’s, sempre aos sábados à noite, e devorar o seu sanduíche predileto, o “quarteirão-com-queijo”, acompanhado de meio litro de Coca Cola. No mais, valia-se da comidinha caseira de dona Lourdes, sua mãe, costureira afamada pelo talento em tudo o que dizia respeito a agulha, linha e tesoura, com o que tirava o suficiente para sustentar uma vida modesta mas digna, para ela e o filho. Moravam na casa que fora do pai dela, o avô Pedro, falecido há pouco mais de seis anos (do embarque de Taquinho) e que também fora mestre dos mesmos dons que a filha herdou, e deixou fama de melhor alfaiate da região. O avô Pedro fora para Taquinho um pai e um amigo, porque o marido de dona Lourdes, seu Eustáquio, oficial mecânico da Vale do Rio Doce, era um pai ausente na vida dele; um zero à esquerda que, quando muito, aparecia uma vez por mês, num fim-de-semana, e só garantia o mencionado dinheiro para pagar a escola e uma muito irregular ajuda à esposa para o pagamento das contas da casa.

A casa era a mesma em que nascera dona Lourdes, logo quando o pai dela a adquirira, no início dos anos 50; uma casa pequena de três quartos, um tanto envelhecida, mas conservada com carinho e asseio, e que ocupava um terreno relativamente grande, rodeada de quintal, varandinha e jardim. Ficava na paróquia da Igreja de N. S. Lourdes, a santa que deu o nome e tornou-se padroeira da mãe de Taquinho, e da qual ela manteve-se devota, como Filha de Maria e voluntária do Lar das Crianças, entidade beneficente mantida pela casa paroquial. Sua mãe, dona Laila, morrera do parto, no mesmo dia em que lhe dera à luz, e seu Pedro não mais se casou, dedicando-se somente ao ofício e à filha única, com a valiosa ajuda da velha negra Honória, empregada da casa, babá e mãe substituta da menina até se despedir da vida, pouco depois de Lourdes completar quinze anos. Na época da aquisição da casa, era ali um subúrbio pobre. Hoje é o Bairro de Lourdes, bairro quase central e de classe média próspera da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais.

Dali, Taquinho saía de bicicleta todas as manhãs, de segunda a sexta, fizesse sol ou chuva, voltava para almoçar com a mãe, fazia uma breve sesta, e de novo ia pedalar cidade afora até às cinco ou seis da tarde. Nem todas as noites ele ia à escola, só quando necessário para não perder o ano. Assistia ao jornal e a um ou outro capítulo de novela na televisão com sua mãe, conversavam um pouco e depois ia para o seu quarto burilar o plano de viagem. Dona Lourdes não era contra, mas também não era entusiasta dos planos do filho. Às vezes, ela citava o pai, que vivera as agruras da emigração em vários países, inclusive os Estados Unidos, onde vivera, criança, no início dos anos 30, e lá comera o “pão que o diabo amassou”: “se tem um paraíso na Terra” – dizia seu Pedro – “ele está bem aqui, no Brasil”. Taquinho retrucava que os tempos eram outros e que agora, se tivesse nascido nos EUA, ele poderia até ser um astronauta da NASA. – “Que futuro tenho aqui, nessa merda de cidade?” – questionava Taquinho, embaraçando a desconfiada mãe.

Mas os planos de Taquinho não eram como os de muitos de seus concidadãos e colegas de entusiasmo com a metrópole. Não, não era o caso dele o modelo de Mozart (pronunciavam Mozár), um exemplo célebre na cidade, que fora com a mão na frente e a outra atrás e se deu bem trabalhando no setor de mudanças no interior do país, onde agora vive numa cidadezinha ostentando casa cafonérrima com piscina, mulher loura e filharada gorda. De lá, fica enviando fotos que circulam na cidade toda, como se para fazer inveja. Até levou os pais, que não se adaptaram e acabaram voltando para Valadares.

Os planos de Taquinho eram ambiciosos. Foram minuciosamente detalhados ao longo de três anos, junto com um funcionário de uma agência de turismo que era experiente no negócio e até ficou seu amigo, tendo lhe dado dicas muito boas. Taquinho queria chegar pela porta da frente, no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, onde pretendia fixar residência e só voltar ao Brasil vez ou outra, curtindo umas férias. Pensava também em levar a sua mãe algum tempo depois de lá se estabelecer, e tirá-la de uma vez por todas da vidinha provinciana em que a via, desperdiçando talento de costureira.

E ia com uma grana razoável, não chegaria lá na pindaíba, dependendo de favores. Comprara um big pacote turístico de seis mil dólares e levava mais quatro mil para os gastos iniciais. Calculara tudo como se fosse um investimento, era esperto e inteligente.

O pacote era para três meses de permanência (para mais que isto não conseguiria visto) e incluía curso intensivo de inglês (o amigo tinha lhe dado a dica: aprender inglês lá e não gastar com cursinhos mixurucas daqui, que não adiantam nada: “Você chega lá e nem sabe dar bom dia”). O curso duraria um mês inteiro e era em Orlando, na Flórida, onde ficava a Disneyworld (conhecê-la era sonho que ele cultivava desde que se entendia por gente), também incluída no pacote, com dois fins-de-semana de hospedagem em hotel da própria Disney, ingressos para atrações pré-escolhidas e direito a acompanhante na primeira estadia (ele convidara um amigo que morava em Nova York, o qual se oferecera para ser o seu guia introdutor na metrópole). Ao fim do curso, calhava exatamente a realização de outro sonho há muito acalentado: um show ao vivo de Madonna, que estava agendado em Washington, DC, onde encontraria de novo o amigo e depois iriam juntos para Nova York, de trem. Tudo já no pacote, o curso, as passagens, os hotéis, a alimentação, os ingressos do show, etc. Ao fim de um mês, se nada mais desse certo, ele teria realizado a metade do seu grande sonho: conhecer a Disney, aprender inglês e ver Madonna. E teria ainda quatro mil dólares e dois meses para realizar a outra metade: ser cidadão da “América” (que era como ele e os “colegas” valadarenses chamavam os EUA).

O maior problema seria o de conseguir o visto, mas deu tudo certo. Ele dera sorte, pois tinha nascido em Belo Horizonte, onde os pais, logo após se casarem, vieram residir para que seu Eustáquio fizesse o treinamento na Vale, e aqui pensavam estabelecer-se em definitivo. A agência de turismo tinha seus macetes, e conseguiu um atestado de residência “laranja” para ele em BH. Governador Valadares, para o consulado, todo mundo sabia, era nome “mais sujo do que pau de galinheiro” e não podia constar do pedido, ou o visto não saía. Resolvido isto, para Taquinho havia outro risco, pequeno, segundo o agente - o seu próprio nome: José Eustáquio Raghid Varela. O Raghid materno poderia dar galho, por isto só ia por extenso onde não podia estar de outra forma; no mais, era José Eustáquio R. Varela. Taquinho passou dois dias acampado na fila que se formava na porta do consulado dos EUA, no Rio de Janeiro, debaixo de um calor de 40 graus e tremendo de medo. Mas, outra vez, deu sorte. Foi atendido por um brasileiro substituto e relapso que mal conferiu a documentação, lhe fez umas três perguntas cujas respostas Taquinho tinha ensaiadas e na ponta da língua, e concedeu-lhe o almejado visto.

Taquinho relaxou enquanto sentia a força da aeronave decolando, o ar fluido se tornando sólido e o poder dos motores distanciando-o do solo que ele observava pela janelinha, sem desgrudar, vendo as coisas diminuindo de tamanho, as pessoas virando formiguinhas... eis então as primeiras nuvens passando, e ele sobre o imenso colchão branco banhado de sol. Pôs os óculos escuros, recostou-se na poltrona e começou a repassar os planos: chegaria numa terça de madrugada e teria até o amanhecer para se desvencilhar da alfândega. Tomaria um táxi até o endereço do amigo cicerone, cuja chave do apartamento lhe seria deixada com uma amiga que trabalhava na caixa de uma lanchonete, ao lado da entrada do prédio. Descansaria até o fim da tarde, e, quando o amigo chegasse do trabalho, decidiriam o que fazer na primeira noite. Nos dias seguintes, junto com o amigo (que providenciara uma licença no serviço), compras de roupas, agasalhos, tênis, etc, e o laptop que seria, enfim, o seu primeiro e ansiado PC (Taquinho às vezes usava o computador da agência de turismo e tinha algum traquejo na máquina). Na sexta, ônibus para Orlando e a Disneyworld. Na segunda, o amigo retornaria a NY e ele começaria o curso de inglês na Universidade da Flórida, onde ficaria hospedado. Ao fim do curso, ônibus para Washington, reencontraria com o amigo, iriam ver Madonna e, depois, trem para Nova York e a alvorada da sua vida!

Num determinado momento, quando sobrevoavam o imenso mar verde da Amazônia, foi anunciada uma inesperada escala em Manaus para checagem da aeronave. Os passageiros demonstraram temores, mas, para Taquinho, que não tinha nenhum medo de avião, o maior problema era o desacerto de seus planos que um atraso maior poderia causar. “Essas empresas brasileiras” – pensou atazanado – “bem que eu queria uma empresa americana; mas o preço do pacote subiria quase mil dólares!” De fato, não deu outra. Em Manaus, depois de interminável espera, foram avisados que a aeronave não poderia prosseguir. Outra aeronave seria alocada para o vôo e só estaria disponível no dia seguinte de manhã. “A empresa se encarregaria da hospedagem e alimentação dos passageiros até o novo embarque” – disse uma funcionária aos passageiros.

Porém, Taquinho, astuto, durante a espera reparou que um vôo da American Airlines decolaria de Manaus para Nova York ainda naquela noite, e deu uma sapeada no balcão da empresa, levando uma conversa com o seu pessoal. Lá ficou sabendo que ainda havia lugares e, se a empresa dele autorizasse, ele embarcaria. Taquinho tinha boa lábia e levou um lero com o gerente da empresa brasileira convencendo-o de que era melhor negócio embarcá-lo do que bancar a sua estadia em Manaus. O gerente topou, o negócio foi feito, foram providenciados os papéis, a bagagem foi trocada de avião, e Taquinho embarcou.

Foi um vôo perfeito que pousou no aeroporto John F. Kennedy, de Nova York, exatamente às 08h45 (hora local) do dia 11 de setembro de 2001.

Capítulo 2