Capítulo 20

A contagem regressiva começou na noite anterior, assim que o Mujahid foi posto a dormir pelos médicos. A partir dali, cada minuto estava devidamente roteirizado. Desde Guantânamo, Taquinho não conseguia dormir bem. Por razões diversas, do seu estado de saúde aos traumas psíquicos, ele não lograva mais de três ou quatro horas de sono durante a noite. Mas agora ele iria precisar de todas as suas forças e deveria dormir pelo menos oito horas, logo depois de receber as últimas injeções de cortisona.

Foi despertado às seis da manhã, como combinado, para a primeira oração do dia. Depois, fez o desjejum comendo de seu regime alimentar o que melhor o satisfazia. Comeu a sua predileta banana batida com leite e cereais e uma gelatina de amoras, que Zahirah preparava com doçura, só para ele. Tomou sucos naturais e pílulas vitamínicas.

Passaram então a aguardar os informes da resistência que deveriam confirmar os eventos externos que precisavam se cumprir para que a operação fosse acionada. O último chegou às 10h30, confirmatório, como os anteriores, de que tudo estava como previsto e o plano poderia prosseguir. O Mujahid despediu-se solenemente de seus companheiros, deixando por último Fadil, a quem deu um abraço forte e demorado. Vestia uma túnica simples e um gorro vulgar.

Reverenciado por todos os presentes, que se curvaram à sua passagem, ele seguiu um dos guerrilheiros e deixou o esconderijo por uma porta camuflada que dava para o depósito de um armazém, dentro do qual já os esperava outro homem. Este guiou a dupla por labirínticos corredores internos de uma quadra comercial, até chegarem nos fundos da mercearia onde o Mujahid substituiria seu sósia. Deixado só no lavatório da mercearia, onde tomou as pílulas que lhe foram prescritas, aguardou a chegada do sósia. Minutos se passaram, e ele surgiu. Em silêncio, cumprimentaram-se e trocaram as roupas. Diante do minúsculo espelho que havia ali, Khalid deu os toques finais para ajeitar o “figurino” do sósia, composto de roupas ocidentais vulgares, até ficar satisfeito e sinalizar a sua aprovação. Em seguida, se foi com os dois homens, e Taquinho então saiu do lavatório, sentindo-se como se, finalmente, estivesse entrando em cena.

A operação estava iniciada!

O olhar da mãe de Khalid, ao vê-lo, foi animador. O dono da mercearia não sabia da operação e fora escolhido para o primeiro teste da substituição. Taquinho deveria se fazer bem visível diante dele, e foi o que fez. O homem despediu-se da mãe de Khalid e brincou com Taquinho como se o conhecesse. Este devolveu a brincadeira com gestos, despedindo-se dele. Pelos sorrisos do homem, percebeu que se saíra bem, e isto lhe deu ânimo ainda maior para prosseguir.

Saiu de mãos dadas com a mulher pelas ruas centrais de Bagdá, naquela hora repletas de gente por todo lado. Era um dia nublado e frio; mesmo assim o Mujahid teve de se esforçar para acostumar-se com a luz solar, que não via há dez dias. Caminharam por cerca de dez minutos até o portão da Zona Verde. Ela se despediu dele com um beijo na testa, na frente das sentinelas, como fazia com o filho, levantando discretamente o véu com uma das mãos. Naquele dia o patrão não pedira compras para o restaurante, mas isto também fora previsto, e o Mujahid passou sem problemas pela revista e as sentinelas. Penetrou, então, o cenário da operação reconhecendo-o perfeitamente. Muitas pessoas transitavam a pé ou de carro pelo caminho asfaltado em declive que seguiu até a entrada de serviço do restaurante, não muito longe do portão. Alguns acenaram para ele, que retribuiu, mas a maioria nem se deu conta de sua passagem. Sentia-se bem disposto; nas suas condições, poderia mesmo dizer que se sentia “em plena forma”.

Ao entrar na adega, surpreendeu-o a grande quantidade de garrafas que deveria subir ao andar de cima. Pelas contas que fez ali mesmo, diante das garrafas, seriam necessárias ao menos doze escaladas. Mas ele estava animado, quase frenético; o “tratamento” que recebera parecia estar fazendo o efeito desejado, e o seu ânimo entrara na fase mais dinâmica. Por isso não titubeou: vestiu o suspensório e começou o serviço.

Porém, na quarta ou quinta escalada começou a sentir o esforço, e reduziu a velocidade do trabalho. Na oitava subida, achou que não ia dar conta; o esforço era enorme, talvez ele não aguentasse. Mas o patrão surgiu lá de cima fazendo cara feia e pedindo pressa, e isto funcionou para ele como um estimulante a mais. Passou a fazer as subidas tentando não pensar nas dores nem no cansaço, pedindo a Deus para que não desmaiasse. Finalmente, num esforço tremendo, que não podia deixar visível, logrou a subida em que levava as últimas garrafas ao balcão. Por sorte, os comensais já adentravam o salão e os funcionários estavam muito atribulados para ter tempo de notá-lo, só o barman chegou a fazer uma chacota risonha em inglês, mas ele se fez de desentendido, valendo-se de um gesto que aprendera de Khalid.

Quando se assentou no banquinho, ao lado do tanque, viu no relógio do celular que faltavam 22 minutos para o ato final da operação, oito a menos que o previsto nos ensaios e simulações. Mesmo assim, optou por usar cinco desses preciosos minutos para repor as forças, num breve descanso que fez de olhos fechados, como se estivesse ouvindo o MP3. Na verdade, rezava.

Não se arrependeu dessa breve pausa, também prevista nos ensaios, se fosse necessária. Ao dar início às tarefas programadas, se sentia com renovada disposição. Abriu a tampa do bueiro com certo esforço, parecia-lhe mais pesada que a dos ensaios; retirou uma por uma as garrafas de “O Esplendor do Império”, cuja forma exótica e os belos rótulos viu pela primeira vez, admirado – aquele fora dos poucos detalhes que a resistência não conseguira reproduzir com exatidão nos ensaios. Teve relativa facilidade para prepará-las com o explosivo, havia ensaiado bem, a diferença agora é que suas mãos tremiam um pouco, não sabia se pelo cansaço ou pela emoção.

Mas tudo deu certo. Vestiu o suspensório e o escapulário, testou o funcionamento do dispositivo, ligando cada uma das quatro pontas ao MP3 e fazendo-o funcionar; dispôs as garrafas cuidadosamente nas respectivas sacolas e dentro delas enfiou lentamente as pontas dos fios de detonação até senti-las tocar o fundo.

Tudo pronto! Olhou para o relógio do celular: faltavam quatro minutos para uma hora. Respirou fundo, pediu ajuda a Deus, e colocou sobre a palma da sua mão direita o escapulário aberto. Ainda orando ao Misericordioso, passou à etapa final da operação, ao iniciar, calmamente, a caminhada em direção a seu alvo.

Capítulo 21