Capítulo 27

Padre Antonio não se lembrava de uma missa tão mal celebrada por qualquer padre como aquela que celebrou neste dia, às cinco da tarde. Não houve jeito de se concentrar no que fazia, o sermão saiu confuso - um desacerto! -, e por pouco ele pulava o Ofertório. A outra missa de sua escala, prevista para logo mais, às sete horas, ele permutou com padre Belizário alegando indisposição.

Na verdade, estava aflito e preocupado. Não quis abrir o embrulho de plástico que dona Lourdes enterrara no cemitério (por certo acreditando que ele não seria desenterrado tão cedo) antes de cumprir os compromissos do dia. Sabia que não haveria nele nada que se pudesse avaliar em pouco tempo. Estava certo de que devia ser a “mensagem de Taquinho”, mas não fazia a menor idéia do que constava nela ou de que forma era. Percebeu que não eram cinzas de cremado, como suspeitou Cirineu, e vislumbrou através do plástico algo parecido com o símbolo muçulmano do Crescente Lunar.

Mas isto não o preocupava de imediato. Confiava em Cirineu, mas conhecia bem os olhares e as línguas afiadas da paróquia e, no momento, ela estava bem servida delas, com vários hóspedes e o pessoal da casa ainda retomando as atividades algum tempo depois do almoço, hora em que Cirineu subiu ao seu apartamento. Difícil afirmar que ninguém o vira; vindo do cemitério, ele teria de passar pelo refeitório e pela sala de TV até chegar na escada que dava para o andar de cima. Dificilmente estariam ambas vazias naquela hora.

Padre Antonio considerava a coisa mais difícil do mundo guardar um segredo em uma casa paroquial. Em todas, abundavam os linguarudos e os bisbilhoteiros. A dele não era diferente. Já quando chegara a Valadares tinha a sua pasta preta, da qual nunca se separava, onde guardava seus escritos em andamento, documentos confidenciais e tudo o mais que nela coubesse e que queria resguardado dos abelhudos. Não havia numa paróquia um só esconderijo, porta, armário ou gaveta, com ou sem chave, que garantisse segurança.

Ele tinha na sacristia um gavetão com chave segura onde guardava a pasta enquanto celebrava a missa, mas, para ele, a maior segurança desse gavetão era porque dava para ser visto e vigiado do altar durante a celebração. No almoço, Luzia havia-lhe entregue uma sacola com paramentos novos que ele queria experimentar antes de usá-los. Foi nela que colocou o embrulho de dona Lourdes e o levou, junto com a pasta, para o gavetão da sacristia. Ao terminar a missa, depois de permutar a escala com padre Belizário, ele tomou um lanche rápido no refeitório, subiu aos seus aposentos com a pasta e a sacola e trancou-se lá. Avisou a Graça que desligaria o telefone do seu ramal e não queria ser incomodado. Justificou-se dizendo que precisava de descanso.

Padre Antonio não era paranóico, como o leitor poderia suspeitar depois desse relato. Era um veterano. Escolado e viajado no Brasil todo e no exterior, conhecia as manhas do seu ofício. Sabia que não havia parede que não tivesse ouvidos e fechadura de porta que não tivesse olhos naquela casa. E não eram os ouvidos e os olhos de Deus, eram os da Mitra. A alta hierarquia da Igreja brasileira espionava bem os seus párocos, desde cada um dos livros que mantinham na biblioteca até quantos cigarros fumavam por dia. E, no caso dele, não eram poucos os cigarros como também não o eram os livros, que já iam para mais de cinco mil. Ele acumulava as bibliotecas de padre Maurice, padre Sinfrônio e a dele próprio, parte delas nos seus aposentos de pároco, que dispunha de quarto, sala de estar (que padre Antonio transformou em escritório e biblioteca particulares, onde estudava e escrevia) e banheiro privativo, todos amplos, arejados e bem iluminados, dentro da espaçosa arquitetura de estilo francês que padre Maurice deu ao templo da Virgem de Lourdes e à casa paroquial. O conjunto arquitetônico daquele templo católico era um pedacinho da França incrustado no sertão brasileiro. Das obras de arte até as ferragens o velho pároco fundador trouxera de seu país natal, todas escolhidas a dedo e com bom gosto. “As louças, apesar de inglesas”, costumava dizer, “são também de boa qualidade. As madeiras são brasileiras, melhores não há”.

Padre Antonio fechou a porta do escritório, passou-lhe o ferrolho de segurança e pendurou na maçaneta da porta, por dentro, um aviso de “não perturbe” que trouxera de um hotel numa de suas viagens. Tal providência tinha por finalidade tapar completamente o grande buraco da velha fechadura de fabricação gaulesa que o patrimônio histórico, por sua iniciativa, incluíra no tombamento do conjunto arquitetônico em que habitava.

Em seguida, ajustou a luz do abajur sobre a escrivaninha, pegou uma tesoura e cortou com cuidado o plástico que envolvia aquele “segredo de Lourdes”. Ao ter nas mãos a caixa que retirou do invólucro ainda um pouco sujo de terra, antes de abri-la não pôde deixar de admirá-la nos detalhes e em todos os seus lados. Era um aficionado de antiguidades e objetos de arte, inclusive os de origem muçulmana, cultura da qual era conhecedor e admirador, desde quando fora capelão da Marinha e visitou alguns países do Oriente Médio. Calculou que era obra de artesanato saudita do século XVIII, pelo uso do marfim na marchetaria e pelo desenho do fecho. Não teve dificuldade para entender e acionar o mecanismo de abertura e soltar a tampa, a qual abriu lentamente como se a filar uma carta de baralho. E retirou de dentro da caixa o rolo de papéis com os dois laços de fita verdes que o seguravam. Ato contínuo, ainda segurando o rolo, soltou os dois laços e abriu o volume, reenrolando-o no sentido oposto para anular as tensões a que se acostumaram os papéis e poder dispô-los sobre o tampo da escrivaninha de modo a examiná-los.

Capítulo 28