Capítulo 28

Um pacote de cigarros fechado e outro aberto, sempre da mesma, tradicional e predileta marca, era a “reserva técnica” que aquele pároco, um tabagista inveterado, costumava manter na gaveta maior de sua escrivaninha. Quando acabava o que estava aberto e abria-se o que estava fechado, ele providenciava para que logo lhe viesse um novo pacote.

Nós o vemos agora, concentrado na leitura do documento secreto, que já ia para mais da metade, enquanto abria quase que automaticamente um novo maço de cigarros. Ao lado, um grande cinzeiro transbordava de cinzas e baganas catinguentas e uma xícara de café que acabara de encher até quase ao meio com o que restava de uma garrafa térmica. Não tira os olhos do papel nem para acender o cigarro.

Da cozinha, Graça e Luzia, finalizando a limpeza do recinto e a arrumação do panelório, viam o fumacê que vazava da janela do pároco, realçado pela luz de um poste nas proximidades.

- Hoje a chaminé está a toda – resmungou Graça, que sempre implicava com o vício dele.

- Ninguém me tira que tem a ver com o trem que o Cirineu levou pra ele hoje de tarde – retrucou a outra – Rufino, o novo sacristão residente, estava na sala dos computador e viu ele subindo com uma coisa lá prá cima. Diz que voltou sem ela. E só tinha o padre Antonio lá em cima naquela hora.

- E a cova da última azaléia que dona Lourdes plantou está lá aberta, eu vi, lá no cemitério. Cirineu não é de deixar trabalho pela metade. Preguntei a ele e me disse que era prá plantar uma árvore. - Que novidade é essa agora? - falei prá ele. Ele não quis conversa; disse que era coisa entre ele e o padre e que nóis num tinha que nos meter nisso não. Atrivido! Inda falou que nóis era muito abelhuda.

- Hoje o padre nem quis jantar. Tomou uma xícara das grande de café forte e amarguento - e sem açúcar como só ele pra gostar. Comeu só um pãozinho com manteiga, mais nada. Depois pediu uma garrafa cheia de café prá levar pro quarto. Só vai parar de ler e escrever lá pras alta madrugada, sei quando ele tá de veia.

- Faz tempo que não vejo ele assim, o Rufino falou que a missa que ele deu hoje foi de amargar. Parecia missa de padre novato, errou tudo, fez confusão, até tropeçou nos degrau do altar e quase tomou um tombo feio na frente de todo mundo.

- Acho que a morte de dona Lourdes deixou ele meio pateta, eu acho. Ele e ela eram assim um com o outro. Já teve gente que desconfiou de coisa ruim, que eles até pecavam. Mas é gente ruim, eles é que é ruim. Eu nunca acreditei, coitada de dona Lourdes, que Deus a tenha (fez o sinal da cruz), era uma santa!

Padre Antonio acabou a parte de Guantânamo e fez uma pausa dramática, com as mãos no rosto, consternado, amargurado. Uma angústia profunda o invadira durante aquela leitura. Pesara-lhe tanto a ponto de balançar a sua fé. Lembrou-se de Dom Hélder Câmara. Uma série de artigos seus sobre a Santa Inquisição chamaram a atenção de Dom Hélder, no final dos anos 60, e depois se tornaram amigos e correspondentes. O célebre hierarca, sem conhecê-lo, publicou comentários concordando com ele em que certas práticas de tortura registradas nas ditaduras latino-americanas eram inspiradas naqueles capítulos macabros da história da Igreja Católica. Padre Antonio estreara como ensaísta com aqueles artigos que foram publicados na revista Pensamento e Liberdade, dirigida pela Mitra Arquidiocesana de São Paulo, periódico este que foi fechado pelos militares em 69, logo depois do AI-5. Neles, ele resumia a pesquisa que iniciara nos tempos de seminário e o levara a viagens ao Peru, ao México e à Europa, onde visitara arquivos, museus e acervos importantes sobre a Santa Inquisição, em especial a segunda fase, “a espanhola”, a que chegou na América Latina.

Intolerância, era para Padre Antonio a palavra-chave da abominável crueldade em que resultou tudo aquilo, falsamente justificada em nome de Deus e de Cristo. O documento que ele tinha diante dos olhos confirmava e atualizava muitas de suas teses. O Vaticano tentara justificar o desatino como “resposta humana” à intolerância dos muçulmanos, a seu fanatismo e fundamentalismo. Contudo, padre Antonio não encontrou respaldo a tais sofismas em nenhum documento sólido, nem em fatos históricos ou razões culturais que pudessem dar alguma sustentação a tais afirmações, que vinham sempre mal alicerçadas, eivadas de preconceito, racismo, parcialidade analítica e, antes de tudo, intolerância.

Tivera pistas da existência de documentos como o de Taquinho no passado, escritos por alguns raros sobreviventes das crueldades inquisitórias, tanto no período medieval como na fase espanhola. Porém, tais documentos, se é que estão conservados, foram-lhe inacessíveis. Apesar dos inúmeros documentos de toda natureza que tivera à sua disposição sobre a barbárie que significou a Santa Inquisição, um depoimento lúcido de quem sofrera aqueles castigos seria de fundamental importância e altamente revelador para quem, como ele, queria encontrar algo mais que fatos históricos.

Padre Antonio trabalhou numa outra tese, estruturada nos mesmos ensinamentos de Cristo, de que há uma necessidade de transferência, dos algozes às suas vítimas, dos sofrimentos interiores e espirituais, em particular, os causados pela culpa que os primeiros condenam a si mesmos, consciente ou inconscientemente. O algoz se sabe ou se sente, interiormente, culpado; considera-se, a priori, um criminoso, mas se recusa a aceitar tal verdade. Daí a sua intolerância por tudo o que ameaça ou pode ameaçar a revelação dessa verdade, seja a si mesmo ou à sociedade. Seria longo nos aprofundarmos nas idéias que o nosso teórico desenvolveu durante muitos anos e que, recentemente, retomara com redobrado interesse diante dos eventos de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Iremos direto a uma de suas conclusões mais destacadas e de maior apego ao argumento que tratamos: para padre Antonio, o sofrimento do algoz é um sofrimento que condena, enquanto o da sua vítima é o sofrimento do mártir, isto é, um sofrimento que salva. Quanto mais tortura, mais o algoz sofre, seja pela condenação que faz de si mesmo, seja pela salvação que percebe em sua vítima. E, não raro, acaba acreditando que no sofrimento do mártir estará a sua própria salvação. Do ponto de vista teológico e espiritual, padre Antonio via sentido em tal comportamento. Cristo perdoara seus algozes e, com isso, salvara suas almas. Mas isto, perante Deus; Cristo tinha o mandado divino e queria dar o exemplo. Porém, perante a Humanidade, seus algozes não foram e nem poderiam ser absolvidos, pois, do ponto de vista humanista - e padre Antonio era um humanista alinhado às raízes filosóficas que são cultivadas desde Erasmo e Thomas Morus -, a tortura é inadmissível e é, também, um crime imprescritível.

A estadia no inferno de Guantânamo narrada por Taquinho de maneira tão objetiva, detalhada e lúcida, somada ao talento especial de escritor que o padre desde cedo reconhecera no jovem, era, assim, por demais importante para ele naquele momento, apesar da carga de tragédia e tristeza que o escrito lhe trazia pessoalmente. Porém – considerava - para a Humanidade e para os estudiosos como ele, aquele documento significava um verdadeiro tesouro.

Capítulo 29