Capítulo 31

- Cirineu, o que temos a fazer agora deve ficar rigorosamente em sigilo. Ninguém, a não ser nós dois, pode saber de nada. Posso contar com você?

- O padre já sabe que sim...

- Jura por Deus?

- Percisa invocá o Santo Nome?! Minha palavra já num basta?

- Basta!

- Istá dada!

Quando se decidira pelo que fazer, padre Antonio percebeu que se não tivesse encontrado o documento, este teria se perdido em pouco tempo. Dona Lourdes não sabia que o plástico é péssimo invólucro para se conservar papéis, tecidos e madeiras. Com o tempo, sabia-o o velho padre, a ausência de arejamento faz desenvolver-se internamente um fungo capaz de destruir o objeto ou os papéis. Por isto, ele recorreu ao armário de velharias da paróquia, que ficava no corredor do segundo piso da casa, perto da porta de entrada dos seus aposentos, e nele encontrou um velho saco de esmolas, usado nos tempos de padre Maurice, feito em pele de cordeiro tingida de preto e com a cruz cristã gravada em ouro, ainda visível, apesar de desbotada. A caixa de dona Lourdes, com o manuscrito da mesma forma em que fora encontrado, coube justa, dentro e bem no fundo dele, com sobra para dobrá-lo sobre si mesmo e fechá-lo hermeticamente valendo-se do seu próprio cadarço de couro, e deixando a cruz visível e bem centralizada na parte superior do novo invólucro. Agora, sim, “per omnia, saeculae saeculorum”, pensou o padre ao amarrá-lo com firmeza.

- Sabe aquela muda de imbaúba que eu pedi a você para retirar do lado de fora da cerca do cemitério, Cirineu? Ela ainda está por aí?

- Eu ia levá pro meu rancho, mas inda istá aqui, prantada num vaso véio pra num morrê.

- Arrume outra para o seu rancho, Cirineu, por que, desta, nós vamos precisar agora. Afinal, foi idéia sua. Quero que você a plante bem no meio do cemitério, no encontro das duas ruelas. E, perto dela, em local onde possamos depois recuperar, eu peço a você que enterre este objeto – e mostrou a ele o embrulho de couro.

- Ah, ago’a sim, Padre – retrucou Cirineu olhando o embrulho – com a cruis de Cristo fica mió no campo Santo. Se o sinhô contá três passo do tronco da árvre, indo bem no meio da rua qui vai pro nascente, e ali cavá cinco parmo terra abaxo, ela vai istá lá, bem interradinha, mió qui dexô do’a Lurde, qui Deus lha tenha (fez o sinal da cruz).

- Eu mesmo vou levá-lo para o depósito e deixá-lo no armário de ferramentas, daqui a pouco, antes de ir ao refeitório para o café da manhã – disse o padre – Tenho de levar uns paramentos para a lavanderia numa sacola e vou levá-lo dentro dela, escondido. Você sabe como são as paredes daqui, Cirineu, são cheias de olhos e ouvidos curiosos.

- O padre tem toda razã! Se saio cum isso daqui ê’es num tira mais os óio de mim nem do imbruio inquanto num sobé ondé qui vô pô ele.

- Temos de concluir tudo hoje mesmo, agora de manhã, de preferência enquanto todos estiverem no refeitório para o “jornal da paróquia”. Amanhã a prefeitura vai começar a obra, e você vai orientar o pessoal para fazer o calçamento a partir do centro do cemitério, em volta do canteiro da imbaúba. Eles vão calçar as ruas com paralelepípedos e isto vai dar uma segurança maior ao nosso segredo. A cova da azaléia de Lourdes você deixa pra fechar na hora em que todos puderem observá-lo.

O plano de padre Antonio era muito simples: precisava garantir a preservação do documento em segredo para ganhar tempo. Em julho, iria participar de um encontro em Belo Horizonte, no qual frei Leonardo Boff estaria presente. Eles então conversariam pessoalmente sobre o assunto e traçariam um plano detalhado. Quando o documento precisasse aparecer, era só cavar naquele lugar e resgatá-lo. No decorrer desse tempo, estaria completamente seguro, ele confiava na palavra de Cirineu. Chegou a trocar correspondência com o frei - pelo correio, claro, e não via e-mail -, e a agendarem um encontro reservado em Belo Horizonte, entre os dois, para tratarem de um assunto que padre Antonio apenas informou ser sobre um documento “altamente relevante para as nossas lutas em prol dos Direitos Humanos mas que deve ser mantido severamente confidencial até que seja traçada uma estratégia segura para revelá-lo”.

Porém, padre Antonio faleceu na semana anterior à do encontro em Belo Horizonte. Não foi por causa do cigarro, nem por problemas de saúde; foi um acidente. Ao entrar na velha banheira de louça inglesa que padre Maurice usava nos seus banhos de imersão semanais, e sobre a qual padre Sinfrônio mandara instalar depois um chuveiro, padre Antonio escorregou e bateu forte com a cabeça na beirada da banheira.

Não morreu na hora, passou dois dias em coma no hospital antes do óbito por traumatismo e fratura craniana. Esses dois dias contribuíram para uma elevada e prestigiosa audiência ao seu enterro, que surpreenderia a ele próprio. Não tão concorrido como o de dona Lourdes, mas com uma importante presença de autoridades políticas e eclesiásticas vindas da capital e de vários estados, incluindo frei Leonardo Boff. Este chegou a indagar a padre Belizário sobre um documento relativo a direitos humanos de que lhe dera notícia o falecido padre. Não sabendo do que se tratava, padre Belizário colocou à disposição do frei a pasta e os arquivos de padre Antonio, autorizando-o a levar por empréstimo o que encontrasse neles.

Os paroquianos, os valadarenses de classe média e o povo humilde também compareceram em massa, este último segmento mobilizado pelo Sindicato dos Garimpeiros do Vale do Rio Doce, que o homenageou publicamente como “Membro Fundador de Honra” e batizou o seu auditório com o nome dele. A oligarquia local e regional não compareceu, é claro; era adversa e temia aquele que chamavam de “padre político” ou “padre comunista”, e que lhe dera tantas dores de cabeça.

O sobrinho veio de Santos com a esposa e os sete filhos, pela primeira vez, e chegou a tempo de coordenar e dar providências para que os ritos e cerimoniais fúnebres fossem dignos do tio. Deixou também transferidos e legalizados os bens pessoais do padre em Valadares, incluindo duas contas bancárias, em favor do Lar das Crianças.

Quase um ano depois, foi a vez de Cirineu, vitimado por um câncer na cabeça, que, segundo especulações médicas, foi causado pelo excesso de sol a que se expunha em seu trabalho. Da descoberta do mal ao falecimento foram três longos meses de internações e sofrimentos, e ele se recusou a ir para São Paulo, onde poderia fazer uma operação. Na última visita que lhe fez no hospital, Graça aproveitou-se da temporária lucidez do paciente para tentar arrancar dele algo sobre “o troço que desenterrou na cova de dona Lourdes e levou pro padre, pouco depois de ela morrer”. – Dei minha palavra pro padre – respondeu o bom homem –, e ele istá cum ela na otra vida. Num posso dizê nada!

Seu enterro foi humilde mas também com alto comparecimento do povo pobre da região e dos garimpeiros. Como sabemos, Cirineu fora um daqueles que padre Antonio libertou do trabalho escravo e o empregou na paróquia. Deixou uma terrinha boa nas margens do Doce que ainda sustenta a viúva e a filharada.

Nesse interregno, padre Belizário assumiu a paróquia e mudou radicalmente a sua orientação política e administrativa. Afastou-a dos teólogos da libertação e aproximou-a da hierarquia católica, do alto clero e da Mitra belorizontina. Fez da paróquia uma empresa, informatizando-a e “modernizando-a”, com a terceirização de serviços (o cemitério, o estacionamento, o arquivo, o refeitório e a cozinha), aluguel de imóveis (incluindo a casa de dona Lourdes); até a torre do templo foi locada para uma companhia de telefonia celular. Providenciou as aposentadorias de Graça e Cirineu; dispensou e indenizou Luzia e os demais empregados. Doou toda a biblioteca para uma universidade católica que havia sido inaugurada em Valadares.

Logrou desvincular a casa paroquial do tombamento e fez-lhe uma reforma de tal ordem, interna e externa, que a descaracterizou quase completamente dos pontos de vista histórico e arquitetônico. Com a colocação de vidros blindex fumê no lugar das velhas janelas de pinho-de-riga, ar condicionado central, aplicação de carpetes sobre as tábuas corridas, revestimento de fórmica sobre madeiras nobres e portas, substituição das velhas fechaduras, louças, ferragens e lustres, instalação de banheiras de hidromassagem, portarias eletrônicas envidraçadas e outras “modernidades” de mau gosto, o vetusto imóvel de nítida inspiração gaulesa e art-décco dos anos 20 se tornou um modernoso monstrengo, um híbrido de casa antiga reformada e motel de luxo.

Passando a contar com forte apoio político, o calado, mas ágil e diligente novo pároco forçou e apressou o acordo com a Vale do Rio Doce sobre os direitos de dona Lourdes, e o conseguiu sob sigilo judicial. As línguas afiadas dizem que o acordo montou em grana preta, mas nenhum centavo ficou no Lar das Crianças, cuja administração a paróquia - depois de ter os valores do acordo e dos aportes deixados por padre Antonio integralmente recebidos, e de ter zerado o caixa -, transferiu à Prefeitura e à União, que, em convênio, passaram a pagar aluguel pelo velho imóvel e honorários por serviços permanentes e eventuais prestados pela paróquia à instituição.

Nos planos governamentais, a instituição deverá receber um novo nome. Algo como Centro Municipal da Infância Dona Lourdes Varela ou similar, desde que homenageando sua mais popular diretora (com a conveniente omissão do sobrenome de seu pai, claro).

As três viúvas também aceitaram o acordo, igualmente sob sigilo. Ao que parece, deram-se muito bem. Todas mudaram-se de Valadares com as respectivas famílias. Duas moram em Miami e a outra na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Foram de tal ordem os montantes recebidos pelos envolvidos na causa, que o “escritório de Valadares” ganhou sede nova e própria de três andares em terreno nobre do centro da cidade, a qual, segundo as línguas, foi quase toda paga com os honorários que lhe coube.

Taquinho foi esquecido. Só o amigo da agência de turismo e o Joãozinho da Bicicleta ainda se recordam dele de vez em quando. Ninguém faz a menor idéia de que ele foi um dos brasileiros mais influentes na história contemporânea universal, e seus conterrâneos nem imaginam que aquele jovem aparentemente fútil e alienado acabara se tornando grande homem e herói festejado no outro lado do mundo.

Mas antes de falecer padre Antonio teve a sabedoria de mandar Cirineu providenciar discretamente a inscrição do nome do jovem na lápide negra do túmulo de seus pais e avós, logo abaixo do de sua mãe, assim eternizando-o:

Lourdes Raghid Varela
*G. Valadares, 1953 †G. Valadares, 2005

José Eustáquio Raghid Varela (in memorian)
*Belo Horizonte, 1978 †Bagdá, 2005

Na paróquia e na cidade ninguém se deu conta disso ou questionou a inusitada inscrição. E o valioso documento que informa sobre a verdade histórica implícita entre aquelas datas e cidades permanece lá, enterrado num local onde só os que já se foram para a outra vida sabem dele.

Capítulo 32