Retorno à razão (ou Duchamp e seus camaradas)

Pouco depois do fim da Primeira Grande Guerra, em uma época difícil e desalentada, Francis Picabia se permitiu afirmar que “a arte é um produto farmacêutico para imbecis”. Era uma frase provocadora, de acordo com o espírito niilista e sem ilusões que surgiu depois da guerra, e que hoje, noventa anos depois, poderia servir para ilustrar a opinião (e para definir a atitude perante a arte) que sobre o público têm boa parte dos críticos e sacerdotes da cultura, além dos mercadores e beneficiários do grande negócio das megaexposições, museus e coleções particulares. E que torna possível fraudes a partir de banalidades como as de Damien Hirst, capaz de levar a preços de disparate um tubarão como peça artística ou de vender um bezerro conservado em formol, ou as de Tracey Emin, ilustrada artista que monta uma “instalação” composta por sua cama, as colchas manchadas de fluidos vaginais, camisinhas usadas, sua roupa íntima suja, garrafas de umas e outras beberagens. Soberba estupidez. Mas já se sabe que tudo é possível na época das maravilhas do capitalismo declinante, desde que haja montanhas de dinheiro em jogo.

Man Ray já então ironizava a ingente obra intelectual que especulava com a arte abstrata, com os autores de prolixas exegeses da obra artística fazendo-se de pretexto intelectual a um comércio que crescia a cada dia e acumulava lucros milionários. Picabia, por sua parte, que apostava numa arte amorfa, ria, como Marcel Duchamp, das idiotices elevadas à categoria de “obras de arte” que críticos e marchands acatavam tão seriamente. Porque, no grande universo da arte contemporânea, há obras brilhantes, intuições geniais, mas também há bazófias, e, não raro, bobagens sem qualquer transcedência. Na trajetória de Duchamp, e na de seus amigos Picabia e Man Ray, encontramos tudo isso mesclado, como na poesia de Nicolás Guillén[1].

* * *
Retorno à razão é um filme de Man Ray que não chega a três minutos de duração e cujo título irônico faz referência às sombras que compõem as imagens na película. Rodou-o em 1923, quando Lenin tinha já um pé na tumba, e, na América, terra de Ray, se acendiam as luzes dos anos loucos, quando os inspiradores do Great Gatsby brilhavam em suas festas de Long Island. Retorno à razão nos conduz à lembrança do filme The Great Gatsby, do irlandês Herbert Brenon, rodado em 1926, a partir da novela de Scott Fitzgerald de mesmo nome, filme do qual nada sabemos, porque se conservou apenas um minuto da metragem: sombras, como no celulóide de Man Ray. Parece uma guinada na história: nesse ano, Ray era ainda um jovem de pouco mais de trinta anos e podia ter perfeitamente compartilhado dessas noitadas de álcool, sexo e cocaína que Scott Fitzgerald relata em sua novela, ainda que, em 1926, fazia cinco anos que havia deixado Nova York por Paris, depois de publicar o único número da revista New York Dada. Em 1923, na estréia do filme de Ray num teatro de Paris, Aragon, Breton, Éluard, Péret, organizaram um escândalo para promover a sessão, ação própria das inclinações provocadoras que acompanhavam as vanguardas e os jovens, e não tão jovens, que, às vezes às cegas, buscavam novos caminhos para arte e a vida. Esse filme de Ray foi exibido recentemente na exposição organizada pelo Tate Modern of London e o MNAC de Barcelona, dedicada aos que seus curadores qualificam de artistas provocadores do século 20: Duchamp, Picabia e Man Ray, expoentes de uma corrente vital que impugnava a tradicional concepção histórica do que seria uma obra artística e que entraram na vida adulta quando o impressionismo ainda dominava o panorama artístico europeu.

Aos três os uniu durante toda a vida adulta uma amizade que influiu em suas propostas intelectuais, e a mostra do Tate é uma evidência de que as correntes da moda, quase sempre dependentes dos mercadores e da busca do lucro, consideram hoje o fenômeno dadá um dos movimentos fundamentais da arte contemporânea, algo que não deixa de ser um paradoxo se consideramos que os dadaístas proclamavam, já nos tempos da grande guerra, a “morte da arte”. Tristan Tzara, Hans (ou Jean) Arp, inclusive Breton, formam o grupo de dadaístas que, de Zurich, fazendo da provocação e da burla um recurso central de suas atividades artísticas, conseguiram romper as regras convencionais, forçando a codificação de outra leitura e a busca de novas definições para o “objeto artístico”. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico Duchamp, Picabia e Man Ray eram dadaístas sem sabê-lo. Estavam em Nova York quando tiveram notícia do movimento dadá graças a uma carta enviada pelo próprio Tzara no final de 1916.

Duchamp e seus camaradas se deram conta então de que tinham propostas semelhantes às do grupo de Tzara. Constataram que os que começaram a debater o conceito de obra artística, burlando das convenções consagradas, aceitas pelo público culto e pelas distintas correntes artísticas, e postulando a provocação como recurso foram o romeno Tzara, o francês Hans Arp e os alemães Hugo Ball, Richard Huelsenbeck (que chegou a afirmar que o dadá “era o bolchevismo alemão”, ainda que o dadá pouco unisse Berlim a Hannover), Schwitters e seus Merz, incluindo Grosz. Duchamp, Picabia, Ray, que configuraram o dadá novaiorquino, são os que nos interessam aqui. De fato, quando Tzara e seus amigos fundaram o Cabaret Voltaire para debochar da cultura estabelecida, conectaram com as inquietudes de uma revista, 291, criada na galeria do nº 291 da Quinta Avenida, na qual colaborava Picabia, que fundaria em sua honra outra revista, a 391.

Tudo começara poucos anos antes. Em setembro de 1911, encontraram-se no Salon d’Automne[2] um normando, Marcel Duchamp, que viera para a capital francesa sete anos antes, e Francis Picabia, um parisiense descendente de espanhóis, filho de um adido da embaixada cubana. Nesse momento, Duchamp tinha 24 anos, e Picabia, 32. O primeiro procedia de uma família com inquietações artísticas, tal como seus irmãos Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon. Dali, fizeram-se amigos e seguiram trajetórias paralelas, até que, quatro anos depois, em 1915, enquanto a Europa se desagregava, voltaram a se encontrar nos Estados Unidos.

Duchamp chegou a Nova York em 15 de junho de 1915, quando a população européia começava a se dar conta de que a guerra seria longa, e já se olvidavam os repugnantes gritos de júbilo com que muitos haviam saudado o início do conflito. Os irmãos de Duchamp, Jacques e Raymond, haviam se alistado no exército francês. Por sua vez, Picabia, que deveria ir a Cuba numa missão de abastecimento para as forças armadas francesas, desertou do exército e foi para Nova York, onde chegou poucos dias antes de Duchamp. Lá, voltaram a se encontrar e conheceram um filho de imigrantes russos, Emmanuel Radzitsky, cuja família havia adotado o sobrenome Ray quatro anos antes. A camaradagem entre Duchamp, Picabia e Ray duraria enquanto vivessem. Frequentavam muitas personagens, como, por exemplo, o pitoresco Arthur Cravan, e Henri-Pierre Roché, que também viajara de Paris a Nova York e que nos deixou O atelier de Duchamp na Rua 67 West, 33, ensaio fotográfico feito entre 1917-18, onde se vê a Roda de Bicicleta que tanto daria o que falar. É o mesmo Roché que deixou uma novela inacabada, Victor, na qual descreve suas relações com Duchamp, Picabia e a atriz Beatrice Wood (também escritora, pintora e amante de Duchamp, que morreu em 1998: viveu 105 anos!). Muitos anos depois, Roché mereceria a atenção de Truffaut[3]. O studio da 67 West era frequentado pelos três camaradas naqueles anos novaiorquinos em que criaram um peculiar núcleo dadá, e, mesmo depois de se separarem, sempre mantiveram relações, às vezes muito estreitas, compartilhando experiências, frequentando os mesmos lugares e círculos de artistas, circunstâncias estas que explicam boa parte da produção que deixaram, de seus interesses intelectuais e das anedotas públicas e privadas a respeito deles.

Nos anos anteriores à Primeira Grande Guerra, tanto Picabia como Duchamp (e talvez Ray, ainda que não se saiba com precisão) se interessaram pelas idéias de um filósofo alemão do século XIX, Max Stirner, considerado por alguns “anarquista antes do tempo”, que propunha uma peculiar forma de reivindicação individualista, contrária ao Estado, idéia solipsista que seria desdenhada por Marx, mas que as correntes anarquistas da época (Goldman, Berkman) acolheram com interesse. O Estado, a Humanidade, Deus, são para Stirner entes imaginários, falsos, e a única certeza é o Indivíduo, com maiúscula. Duchamp chegou a reconhecer que sua contribuição artística tinha fundamentos filosóficos na obra de Stirner Der Einzige und sein Eigenthum (O único e sua propriedade). No prólogo dessa obra, Stirner começa a dissertação citando um verso de Goethe, “Fundei minha causa em nada”, e a encerra afirmando “O divino vê a Deus, o humano vê o homem. Minha causa não é divina nem humana, não é nem a verdade, nem o bem, nem o justo, nem o livre; é o meu, não em termos gerais, senão únicos, como eu sou único. Nada está por cima de mim.” É toda uma declaração de princípios que ilumina boa parte da trajetória de Duchamp e o dadaísmo. Ao mesmo tempo, não devemos ignorar que Man Ray frequentou o Ferrer Center de Nova York, fundado pelos seguidores de Ferrer i Guàrdia[4]. Dadá foi uma rebelião contra o estabilishment, mas não uma revolução que pretendia marchar com os movimentos políticos mais renovadores, ainda que o núcleo dadaísta berlinense tenha adotado um perfil distinto, mais radical. Porém, o dadaísmo era a antiarte, o sem sentido, o niilismo feroz que divertia os espíritos audazes precisamente porque escandalizava a burguesia bem pensante, mesmo que estivesse longe de atemorizá-la. O dadá ia contra tudo e todos, pelo menos na aparência. Talvez por isso, Duchamp debochasse dos cubistas que seguiam a estrela de Picasso, mas não via problemas em apresentar seu amigo Picabia a seus irmãos envolvidos com o cubismo, nem ligava que o amigo, ainda jovem, já conhecesse Braque. O provocador Picabia, laço entre o dadaísmo parisiense e novaiorquino, diria depois que “o cubismo é uma catedral de merda”, sem explicar se se referia à imagem de um palácio episcopal cheio de excrementos ou à de uma igreja decrépita e decadente. Tanto faz. A célebre exposição da Society of Independent Artists, na qual Duchamp apresentou seu urinol[5], seria de certa forma o ponto de partida de uma atitude radical que chegaria a extremos delirantes quando seu amigo Arthur Cravan, que se afirmava poeta, pintor, boxeador, cuidador de cangurus, parente de Oscar Wilde, ladrão e outras lindezas, teve de pronunciar uma conferência, na qual chegou bêbado (carregado pelo próprio Duchamp) e tentou desnudar-se diante do público, protagonizando um escândalo monumental, porém inconsequente. Puro dadá. A vida é cheia de casualidades: esse mesmo Cravan, que tinha viajado de Barcelona até Nova York no mesmo navio em que viajava Trotski, desapareceu no Golfo do México em 1918; e o líder bolchevique, sempre preocupado com as questões artísticas, deixou Nova York uns dias antes da exposição que exibiu o urinol de Duchamp, numa das tantas coincidências da história, apesar de que os dadaístas passavam longe do radicalismo político que representavam Trotski e o bolchevismo.

Tudo parecia ir muito bem, mas Nova York se esgotava: em outubro de 1917, Picabia volta ao Velho Continente, a Barcelona, e Duchamp vai para a Argentina em meados do ano seguinte, para, um ano depois, voltar a Paris. Por sua parte, Man Ray permanece em Nova York até que, em 1921, se instala em Paris, onde viverá até o começo da ocupação nazista. A fotografia documenta esse período e muitas de suas paixões, apesar de que a Man Ray não agradava ser reconhecido só como fotógrafo. Na exposição do Tate vemos Picabia, ao volante, em 1922, capturado pela câmera de Ray: nessa imagem o pintor posa como se fosse Tamara de Lempicka[6], porém olhando para a câmera e com uma enorme buzina ao alcance de uma de suas mãos e com a outra apoiada no volante. A Picabia sempre agradaram muito as mulheres, o ópio e a velocidade: teve seu primeiro automóvel quando era uma extravagância possuir um, em 1900.

Na exposição organizada pelo Tate com obras dos três camaradas, exibe-se a Gioconda com bigote e cavanhaque, olhando o visitante, esse célebre (e insignificante) L.H.O.O.Q., que Duchamp fez em 1919, e que depois teria novas versões. Também está o Porta-garrafas, uma geringonça para apoiar garrafas feita de aço galvanizado que Duchamp comprou em 1914, expôs e jogou no lixo (e teria de comprar outras iguais depois), e o urinol, ou A Fonte, assinada por R. Mutt. Todos os ready made ali expostos são réplicas produzidas por um velho amigo do artista, Arturo Schwarz, a quem encarregou, muitos anos depois, de fazer as cópias de seus objetos perdidos ou simplesmente desprezados nas lixeiras, circunstância que bem nos demonstra a importância que o próprio Duchamp dava aos objetos que utilizava para suas provocações, a essas “obras” tão veneradas depois pela crítica sem critério. Estava também ali Homem e Mulher jovens na primavera, de 1911, uma obra que recorda as figuras da última etapa de Matisse, e o Nu descendo a escada, que foi exibido pela primeira vez em Barcelona, e, em 1913, em Nova York, obra que escandalizou (como um nu se representa descendo uma escada? – pensaram), e que buscava capturar o movimento com base na fusão de imagens estáticas, como faziam naquela época outras correntes: depois de tudo, Marinetti chegou a afirmar que um automóvel veloz era mais belo que a Vitória de Samotrácia. E o Moedor de Café, de 1911, que é, segundo Duchamp, uma “descrição” do mecanismo. Depois ele faria o Moedor de Chocolate nº 1, que seria o motivo central da parte inferior do Grande Vidro, obra que realizou entre 1915 e 1923, valendo-se do vidro como suporte para um jogo de peças representando “uma noiva e seus sete amantes”, e que obriga a integrar a visão do entorno na própria obra, posto que o espectador vê o vidro e, através dele, o espaço onde está exposto. A noiva está presente também em outras criações de Duchamp, da época em que esteve muito interessado por Lucas Cranach[7].

A Roda de Bicicleta, de 1913, era um brinquedo, uma curtição, porque Duchamp, que gostava de ver a roda girar, não havia inventado ainda o conceito de ready made.[8] Quando o fez, utilizava qualquer objeto, sem valor nem relevância artística, para outorgar-lhe a categoria de arte pelo simples procedimento de considerá-lo como tal, assinando-o e dando-lhe um título. Muitos desses objetos são ironias, piadas engenhosas, trastes que chamam a atenção do espectador ou que o surpreendem. Ray seguiria seus passos fotografando combinações de objetos, onde a obra de arte era a fotografia obtida. Tonsura[9], de 1919, é um célebre retrato que fez de Duchamp, ainda que ninguém saiba o porquê daquela estrela de cinco pontas raspada no crânio dele. Talvez não haja necessidade de sabê-lo, e fora uma simples curtição, como tantas desses três camaradas (Duchamp, por exemplo, inventou um sistema para ganhar dinheiro na roleta, que, pelo visto, não o ajudou em nada). Ready made rectificado (Wanted $2.000 Reward), de 1923, é um cartaz que zomba dos antigos panfletos do tipo “procura-se”, no qual Duchamp incluiu umas fotografias suas de passaporte e pôs o nome de Rrose Sélavy, sua personalidade feminina, e Fresh Widow, a janela negra da mesma Rrose Sélavy, de 1920, que nos deixa inermes ante a obscuridade. Ao lado, estava Mirall, de 1964: é um espelho, nada mais, assinado por Duchamp em seus últimos anos. Sempre irônico, Duchamp anotou: “Estou assinando futuros retratos ready made”.

Picabia chegou a ser um pintor expressionista, até com certo êxito: Adão e Eva, de 1911, é uma obra na qual já inicia alguma abstração. Também foram exibidas Volto a ver em minha memória a minha querida Udnie, de 1914, ao que parece inspirada numa bailarina do navio que o levou de Nova York a Paris, ainda que haja suspeita de que a obra tenha sido iniciada um ano antes - Udnie que dizer: uni-dimensionalidade -, e Noiva, de 1919-1922, que lembra algumas inclinações da vanguarda russa. Há ocorrências de obras sem interesse, como Mulheres com bulldog, um óleo sobre cartão, de 1941-42, de Picabia, que foi adquirido pelo Beaubourg de Paris, e que este museu poderia enterrar para sempre em seus porões, por muito que o autor o fizesse deliberadamente feio, de mau gosto.

Man Ray é representado com O Povo, de 1913, uma pintura de influência cubista, e com Auto-retrato com metade da barba, de 1943. E com picardias sobre seus amigos: Marcel Duchamp com peruca, de 1950, Duchamp com um colarzinho, de 1955, no qual Duchamp leva o colar à frente, como se fosse uma mulher turca. A recordar, a célebre fotografia que ele fez de Duchamp vestido de mulher, adotando a personalidade de Rrose Sélavy, ou a famosa imagem O manequim de Marcel Duchamp, onde a armação só veste a camisa e a jaqueta, e uma lâmpada vermelha para mostrar que é uma puta. Esse gosto pelo disfarce, compartido por Duchamp, Picabia e Ray, adotando identidades falsas, zombando dos iniciados, como a ironia tão repetida de Duchamp em travestir-se em Rrose Sélavy (nome que surge da certeza de que “o sexo é a vida”, dito em francês), ou de Picabia disfarçando-se de enfermeira e Ray de modelo, debochando das convenções, é uma constante de suas atividades, não sei se as chamaria também artísticas.

Apesar de muitas serem obras menores, Ray destaca-se por sua imaginação. A Vênus restaurada, de 1936, com as cordas e o molde de gesso, é uma obra dos meses em que trabalhou com Paul Éluard, colaboração que lembra a de Rodchenko com Maiakovski, ainda que a dos soviéticos fosse muito mais intensa; e o Peso de papéis de Príapo, de 1920, As férias maiores, de data desconhecida, O Enigma de Isidore Ducasse, de 1920, onde Ray parece nos antecipar Beuys[10], quando este nem havia nascido. E sua célebre prancha, titulada com ironia Cadeau (Regalo), de 1936. Na mostra há exemplos de solarização, um efeito descoberto por Ray e sua amante, a fascinante Lee Miller, que também se dedicava à fotografia. Os ensaios desse efeito com impressões fotográficas, sem câmera, deram a série dos rayogramas. A vida era uma curtição, sim, mas podia ser também uma tortura: quando Miller, que era quase vinte anos mais nova que Ray, o abandonou em 1933 depois de uma relação de três anos, este caiu em desespero, sentimento que ilustrou com obras tão surpreendentes como o famoso Objeto indestrutível, um metrônomo a que acrescentou a fotografia de um olho. O amor de Miller passou como uma estrela fugaz. Ficou a sugestiva memória, numa fotografia de 1930, em que vemos Miller nua, fazendo bolhas de sabão.

Coisas como a Étant donnés (Dádiva) que Duchamp produziu ao longo de vinte anos, entre 1946 e 1966, quase em segredo, onde vemos a porta rural com os orifícios, com o nu de uma mulher por detrás mostrando seu sexo em primeiro plano, necessitaram uma gestação laboriosa, ainda que tenham muito de ironia e deboche. Essa instalação, como seria qualificada hoje, só seria conhecida depois da morte de Duchamp: é uma obra que, ao que parece, nasceu da paixão do artista por Maria Martins, esposa de um embaixador brasileiro, e a tornou prisioneira naquela fresta para sempre.

O mesmo se deu com idéias como a Faux vagin, de 1963, em que Duchamp se vale de uma placa de um carro Volkswagen, que, pronunciado à francesa, soa como essa falsa vagina com que intitula a obra. As sugestões do sexo, a interpretação livre do erotismo e as relações sexuais desinibidas foram uma constante na obra dos três autores, até o extremo de Duchamp considerar que o sexo era “o fundamento de tudo”. Seus companheiros não ficariam atrás, mesmo sem chegar aos limites de Duchamp, no recurso engenhoso da ironia, do achado intranscendente, que outros vão aplicar sentido: em 1968, Ray põe um cigarro sobre uma cópia de um auto-retrato de Leonardo e o intitula O pai da Gioconda; há que dizê-lo: é uma simples reprodução com um cigarro de mentira; ou no Monumento ao pintor desconhecido, de 1953, no qual Ray debocha do destino do artista: ele nos mostra um rastelo de croupier.

Talvez seja Duchamp o mais interessante e imaginativo dos três. Porém os anos de juventude passaram com rapidez. Em meados dos anos vinte, Duchamp já trabalhava pouco e pensava em dedicar-se ao xadrez. Realizaria algumas obras, quase em segredo, como a Étant donnés, e algumas caixinhas. E se faria marchand à sua maneira. Em 1923 volta a Paris e se casa (na igreja!) com uma jovem herdeira, Lydie Sarazin-Levassor, vinte anos mais jovem que ele, matrimônio que não durou muito. Por sua vez, Picabia, que já havia rompido com os dadaístas, segue desenvolvendo obras semelhantes e, mais tarde, voltou a se interessar pela arte figurativa. Man Ray continuaria com seus experimentos fotográficos, ao mesmo tempo em que pintava e se dedicava ao surrealismo. Duchamp viveu em Paris até 1940, com a cidade ocupada pelos nazistas, se estabeleceu na França Livre, e, em 1942, foi para Nova York (onde permaneceu até sua morte, mas não sem passar largas temporadas na França). Mary Reynolds, uma velha relação sentimental, ficou em Paris colaborando com a resistência, até ir se encontrar com ele, nos EUA, em 1943. Ele se casaria ainda outra vez, em 1954.

Duchamp, esse peculiar personagem que quis “passar para a clandestinidade”, é o autor dadá mais notável e chegou a ver a primeira grande exposição que a Tate Gallery de Londres montou sobre sua obra, em 1966. É provável que tenha rido bastante diante da sacralização que então já se fazia das suas estripulias e as de seus camaradas, veneração que continua crescendo, até ao ponto de, faz apenas um par de anos, os grandes centros mundiais de arte contemporânea, o MoMA, o Beaubourg e a National Gallery de Washington, organizarem a maior exposição dedicada ao efêmero mas influente movimento dadá. Muitas das peças hoje consagradas (uma réplica! – insisto, réplica –, da Roda de Bicicleta foi vendida não faz muito por quase dois milhões de dólares!) nunca foram consideradas importantes por Duchamp e seus companheiros, porque outorgavam relevância ao gesto e não ao objeto. É provável que Duchamp tenha escarnecido também da eleição de seu urinol de porcelana industrial, comprado em um comércio vulgar novaiorquino, como a obra de arte mais influente do século 20. Se Gombrich[11], que viveu quase todo o século 20, se envergonhava de uma época que fez de um urinol a obra mais célebre da centúria, nós, mesmo que valoremos a ironia do espírito de ruptura e burlesco dos dadaístas, seu aspecto cômico, seus jogos de palavras, seu sarcasmo, inclusive o seu niilismo, o erotismo com que prendaram suas obras, não podemos deixar de constatar sua indiferença diante das propostas políticas de ruptura com a decadência e a corrupção da burguesia européia. Porque os irreverentes frequentadores do Cabaret Voltaire da Rua Spielgasse de Zurich ignoravam que, ao mesmo tempo, na mesma rua, vivia um homem que a história faria conhecido como Lenin. De fato, com exceção do núcleo dadaísta alemão – que se comprometeu com a revolução proletária e cujos membros ingressaram na Liga Espartaquista e no seu prosseguimento, o Partido Comunista alemão -, as questões sociais e políticas, sempre mais relevantes que a arte, não estavam entre os interesses do dadá. Esse humor peculiar, sarcástico, dos três camaradas é um dos traços que permanecem atuais. De Ray, é marcante a sua foto Kiki e Man Ray, sul da França, de 1928, onde a vemos insinuando seus peitos e o fotógrafo com um gorro de camponês, como se fossem uma puta e o cliente. Ou a pequena provocação de L.H.O.O.Q. da Gioconda, acrônimo absurdo cujo som da leitura das letras nos leva à frase em francês “Elle a chaud au cul”, isto é, “ela está com o cu quente”, o que, no vulgo, significava “ela está muito excitada”. Esse humor irreverente, às vezes anarquista, que burla do poder e do artistas, deles mesmos, da transcendência da arte, em que pese a sua implicação pessoal nessa atividade, esse humor tinha uma carga iconoclasta e rebelde que os mantêm vivos. Ademais, o dadá era ação, gesto, absurdo. Suas provocações os fazem mais próximos de nós, simpáticos, mesmo que, às vezes, inconsequentes, como naquele glorioso trabalho de Duchamp e Ray quando rodaram um filme que recolhe exclusivamente os momentos em que Man Ray, com maestria, acaricia a xoxota da baronesa Elsa von Freitag-Loringhoven.

Imaginosos, rebeldes, iconoclastas, talvez inúteis, mas não por isso menos atrativos aos nossos olhares, os dadaístas traficavam com a arte e com a liberdade, detestavam a idéia convencional de beleza, lutavam contra todos, jogavam com a provocação constante, negando ser possível a liberdade do ser humano se não fosse expressão da anarquia mais absoluta, da ação sem causa. Retorno à razão é pura obscuridade, e a arte, “um produto farmacêutico para imbecis”. “Não reconhecemos nenhuma teoria”, escreveu Tzara. Picabia advertia: “Metam na cabeça: o progresso não existe”. Para eles, tudo era arte, provocação, uma grande mentira, e o faziam talvez pensando no verso de Vallejo[12], me gustará vivir siempre, así fuese de barriga.[13] Duchamp, fiel a si mesmo, estava seguro de que a arte morava nas lixeiras e de que a vida não tinha sentido, porque era apenas uma extravagante construção onde os seres humanos, pese o empenho racionalista e classificador do pensamento científico, se movem sem saber que tudo é absurdo.

[ver o filme Le Retour A La Raison, de Man Ray, 1923]

---------------
Francis-Marie Martinez Picabia (Paris, 28 de janeiro de 1879 - id., 30 de novembro de 1953); Henri Robert Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, 28 de julho de 1887 - Neuilly-sur-Seine, 2 de outubro de 1968; foi cidadão dos EUA a partir de 1955); Man Ray [Emanuel Radzitsky] (Filadélfia, 27 de agosto de 1890 - Paris, 18 de novembro de 1976).
----------------

Tradução e notas: Mario Drumond

[1] Poeta cubano (1902-1989), sua obra, calcada nas experiências vanguardistas da década de 1920, caracteriza-se pela busca de uma linguagem que fosse a “expresión auténtica para una cultura mulata, la propia de un país mulato como él mismo, y manifestó una preocupación social que se fue acentuando con el paso de los años”, conforme biografia publicada pela Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile, na página http://www.los-poetas.com/c/bioguillen.htm.
[2] Salão de Outono, criado em 1903 por artistas como Rouault, Matisse e outros, em contraposição ao Salão de Paris, onde pontificava a produção de arte ” oficial” e acadêmica. Jacques Villon, irmão de Marcel Duchamp, participou da exposição inaugural com pinturas e também como organizador da seção de gravuras. [3] Roché é autor da novela Jules e Jim, em que se baseou Truffaut para rodar o filme de mesmo nome.
[4] pensador anarquista catalão.
[5] com o título A Fonte e assinado pelo pseudônimo R. Mutt.
[6] referência a um famoso auto-retrato pintado pela artista, que foi também musa e mulher fatal do período art-deco em Paris.
[7] pintor alemão do século XVI, famoso por seus nus.
[8] O tradutor tem outra tese a respeito da Roda que, apesar de ainda não a ter escrito como tal, está lançada em sua obra de ficção intitulada Dans L’Air – A via Santos-Dumont ou Santos-Dumont – O Filme.
[9] corte de cabelo.
[10] artista alemão, Joseph Beuys (1921-1986), foi influente nos anos 60 por suas posturas libertárias.
[11] alemão, Ernst Gombrich (1909 – 2001) é considerado entre os mais importantes críticos e historiadores de arte da Europa.
[12] peruano, Cesar Vallejo (1892 – 1938) é reconhecido entre os grandes poetas hispânicos do século 20.
[13] “Queria viver para sempre, mas vivi de barriga”, numa tradução livre. “Viver de barriga” é uma expressão que em espanhol significa vida que não tem sentido nem pode tê-lo; insignificância.

Carta aos nascidos em maio

Carlos Drummond de Andrade


Amigos e amigas que nascestes em maio:

Estas letras e este autor aqui estão simplesmente para se integrarem na poesia dessa circunstância e avivá-la em vós, se acaso vai murchando, como sugeri-la a todos os outros seres, infortunados seres que nasceram em março, em julho, em novembro. Porque vosso nascimento é pura canção, mesmo que sejais economistas, deputados, capitães-de-corveta. Uma predestinação lírica presidiu a vosso berço, e que tenhais enveredado por um caminho prático, onde a palavra maio significa apenas assembléia-geral de uma companhia de produtos químicos, não tem a menor importância: estais marcados de maio, carregais convosco, no canal de vossas veias, invisível, incapturável, imperturbável e aliciante, o princípio de maio. E ele jamais permitirá que vos tomem por um simples homem de outubro, e na vossa miúda e radiante biografia há de sempre insinuar a nota íntima, cristalina e melodiosa, de um pequeno acidente feliz, individualizadora do destino humano.

Maio sois e maio continuareis. O uso grosseiro de vossa vida não lhe corromperá de todo a limpidez original; se um dia matardes, se vos venderdes à política, se vos tornardes a vergonha de vossa pátria, ainda assim o lado maio de vossa fisionomia continuará indelével, e fará com que se murmure: "Coitado! apesar de tudo, nasceu em maio." E tu nasceste em maio – assinala o poeta ao fim do canto em que celebra o mês especial, assim como aquele que se inclinou diante do recém-nascido marcado pelos deuses, afiançando: Tu Marcellus eris. Por quê?

Decerto não sabeis bem por quê, mas sentimentalmente o apreendeis, e, homem ou mulher, os nascidos em maio caminham ao peso de uma carga suave – uma andorinha não pesaria menos - , que é o pressentimento, a intuição de participarem de um segredo atmosférico, pois ele está gravado, em hieróglifos, no ar, e no vento perpassa. "Nós os de maio..." – tendes o direito de sublimar, em face da mesquinha situação de nós outros, os do resto do ano (exceto os da segunda quinzena de dezembro, é claro!). E aqui ouso afirmar que vosso segredo é meio-pagão, meio–religioso, de tal modo as coisas se baralham no mundo, e os mistérios se prolongam e se entrelaçam. Porque há em maio dois meses: o mês de Maria, e o mês de maio propriamente dito. Se sois cristãos romanos, maio bate sinos na vossa infância ou na vossa madureza, e aspirais o incenso, entoais o Janua Coeli, Turris Eburnea e não sei que mais invocações encantatórias, e vos ajoelhais, e assistis à coroação da Virgem, se não a coroais vós mesmos, com a mão antiga e branca que nasce de súbito na ponta de vossos braços adultos. Mas, se não sois cristãos, não faz mal, maio ainda é festa, e festa foi sempre, desde o velho mundo latino, que o consagrava a Apolo e lhe punha à cabeça uma cesta de flores. Apolo, flores, fim do cruel inverno, irradiação da primavera, procissão de palmas verdes, enfeites de casa com verde, tudo verde, verde, verde, e esse ramo florido e enguirlandado que na Idade Média o amigo ia plantar à porta da casa do amigo, a 1º de maio, e que se chamava maio, e que sugere ao meu austero dicionarista Caldas Aulette esta expressão para definir um sujeito todo enfeitado: "Parecia mesmo um maio". Como sugeriu a Camões, em momento de ternura, o doce verso:

Só para meu amor é sempre MAYO.

De resto, o segundo maio, o mariano – em que não desfaço, tanto lhe devo eu próprio em evocações e sensações artísticas depositadas no fundo de meu pobre materialismo -, só nasceu mesmo no século XVIII, quando o padre jesuíta Lalomia teve a idéia de transformar paganismo em cristianismo (muitos de nossos santos, Deus me perdoe, guardam a sombra de divindades ou entidades pagãs, a julgarmos pelo caso de São Sátiro, contado por Anatole France), e dedicou o mês a Nossa Senhora, compondo em 1785 Il Mese de Maggio consacrato alle gloria della gran Madre de Dio. Maio cristianizou-se, porém muito de sua magia continua ligada ao reverdecimento espontâneo das árvores, ao desatar das águas presas durante 89 dias e 2 horas, na deliciosa falsa contagem dos meteorologistas, às expansões da terra que penetrou em um novo ciclo e aconselha bichos, gentes e plantas a que amem, amem desbragadamente. Não estou delirando, ó criaturas de maio. Tudo isto se passa em outro hemisfério, mas também por estas bandas austrais maio é primavera, senão na natureza, pelo menos em estado de espírito, em concordância íntima de valores, em consubstanciações vaporosas de que cada um de nós adquire a fórmula, a qual, ó eleitos, nem sequer precisais aprender, pois a recebestes com o primeiro vagido. Concordo, sem repugnância, em que o nosso mês de maio cai no fim do outono. Custa-me pouco aceitar o outono brasileiro, se o vejo, como aqui no Rio, de um azul diáfano, arrepiado por um friozinho que enxuga e perfuma o suor das coisas, tristes coisas urbanas usadas pelo sol do trópico, e por ele restituídas à sua prístina pureza. Não há tempo mais leve, caricioso, humano e coloquial do que este maio carioca, revestido ou não de prestígio mundano, porque sorri tanto aos freqüentadores de concertos como aos homens sentados em bancos de jardim público, ao passageiro do bonde Freguesia, ao remador, à datilógrafa do Serviço de Proteção aos Índios, ao médico do Pronto-Socorro, ao Senador Melo Viana, aos meninos da Escola Cócio Barcelos, aos pedreiros construindo edifícios, à massa palpitante de uma cidade feita de subúrbios que transbordam até à Avenida Rio Branco: maio dá para todos, reparte-se amorosamente entre homens sofredores e homens de boas roupas, como uma conciliação meteorológica, um arco-íris pairando sobre as contradições da cidade. Se bem que, de coração, ele se volte mais, num enternecimento cúmplice, para aquela parte do povo que sua no rude batente, e a que é dedicado, desde 1890, o seu dia inaugural.

Mês de Nossa Senhora coroada de rosas, e de operários que morrem pela causa de oito horas de trabalho no mundo, frio mês das montanhas mineiras, nostalgia de namoradas e rezas, cartuchos de amêndoas que a irmã trazia da coroação na Matriz, que era um grande navio iluminado, conversas no adro, à espera do leilão de prendas, vagos estremecimentos de poesia, formas infantis de um sonho que mais tarde seria inquietação e carinho franjado de ironia – tudo isso vai brotando desta caneta comercial com que escrevo, e baila no ar e me penetra – tudo isso é vosso, é a própria substância de que se tece vossa vida, ó nascidos e bem-aventurados em maio! Para quem esta carta é colocada na mala irreal de uma posta feérica.


CARTA AOS NASCIDOS EM MAIO
Carlos Drummond de Andrade

in Passeios da Ilha, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1952 (coletânea de artigos do autor publicados aos domingos no Suplemento Literário do Correio da Manhã)

Publicação e ortografia conforme, ipsis litteris, Carlos Drummond de Andrade – Poesia completa e Prosa, José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1973.

Capa: Mario Drumond, a partir de calcografia do cartógrafo John Flamsteed [Taurus constellation, in Atlas Coelestis, Londres, 1729] e foto feita por telescópio VLT (8,2 metros) da nebulosa remanescente de uma explosão ocorrida na constelação de Touro, no ano de 1504 [Foto ESO - 2006].

Quero estar em suas mãos
















Já faz uns cinco ou seis anos que não saio desta estante; às vezes perco a conta. Ou seriam seis ou sete anos?... Você que começa a ler esta minha pequena história talvez nunca tenha parado para pensar na dura realidade dos livros sem leitor. Não quero aborrecê-lo com queixas inócuas, mas é da natureza dos seres da minha espécie, os livros, a vontade, o incontido desejo de servir a vocês, os humanos. Esta é a nossa razão de ser, de existir. Ser esquecido em uma estante por anos a fio é a maior frustração que pode ocorrer na vida de um livro. E olhe que não devia estar me lamentando tanto: meu vizinho, “O Corcunda de Notre Dame”, comentou outro dia que já deve ter bem uns quinze anos que ninguém o retira da estante. Melhor sorte tem outro vizinho, o Senhor Brás Cubas: suas Memórias Póstumas foram solicitadas nas listas de leituras obrigatórias de alguns vestibulares e ele não para mais no lugar, sempre é retirado por jovens leitores.

– As traças me apavoram! É terrível, à noite, quando as luzes são apagadas e ouvimos, aterrorizados, o monótono e contínuo ruído do movimento de suas mandíbulas mastigando indefesas páginas. A monotonia de viver confinado às estantes produz melancolia, enfado. Não poucas vezes, quando consigo mergulhar em um sono mais profundo, sonho que fui tomado por empréstimo por algum leitor e saio outra vez para o mundo exterior, vendo-me livre dos muros desta masmorra em que se converte a biblioteca para os que são abandonados nas estantes. Que alegria ver de novo a luz do sol! Que prazer compartilhar a vida, o intenso e caloroso pulsar do mundo nas mãos de um leitor ou de uma leitora. Que delícia percorrer ruas, praças, parques, entrar na casa dele, ir aos lugares aonde vai e ser manuseado por ele ou por ela. Nada é melhor para um livro do que a sensação de ter na pele de suas páginas os olhos atentos de uma leitora. Nestes mágicos momentos, desfruto da grata satisfação de sentir que me torno um manancial de sonhos e desejos, indagações e dúvidas, divagações e certezas. Delicio-me quando cismo com ele à beira do abismo da existência e depois voamos juntos com as asas da imaginação das histórias que carrego no meu corpo.

Mas pior ainda do que as traças (posso afirmar que este medo aflige também aos meus semelhantes) é ser degradado à condição de um reles xerox ou ser aviltado pelos nefastos resumos que pululam na internet e se arvoram a traduzir em umas poucas e mal construídas linhas toda a complexidade de uma obra que algum escritor levou, às vezes, anos para elaborar. Estes dois sujeitos, xerox e resumo, são inimigos mortais nossos, os livros. É a danação da nossa espécie, é a traição maior que pode ser cometida contra os livros verdadeiros que devem ser lidos de forma integral em suas versões originais. Não quero me meter a herói, mas em nome de todos os livros, declaro guerra aos clones! E creio poder falar também em nome de todos os escritores, poetas, ilustradores e por que não, dos leitores conscientes que sabem que é preciso preservar os livros originais!

Para encerrar, gostaria de pensar que em um futuro próximo não venha ser só um sonho voltar a ter leitores em profusão. Quero acreditar que voltaremos a fazer parte da vida de pessoas de todos os tipos e idades que vão encontrar neste “admirável mundo novo” dos dias de hoje, com toda a sua complicada modernagem, a paz, o sossego, na simples companhia de um bom livro.

– Humanos: somos seus cúmplices eternos, sempre solidários; nossa missão é estar prontos e dispostos para ser abertos e nos oferecer inteiramente aos que nos queiram. Nossa entrega é completa, sem restrições. Querida amiga, querido amigo, quero estar em suas mãos!

Rodrigo Leste

23 DE ABRIL: DIA MUNDIAL DO LIVRO

A Conferência geral da UNESCO, reunida em Paris, em 15 de Novembro de 1995 proclamou o dia 23 de Abril "Dia mundial do livro e dos direitos de autor". Na mesma data é comemorado o aniversário de William Shakespeare. Também é lembrado o dia da morte de Miguel de Cervantes.

Revisão: Prof. Antônio Sérgio Bueno e Sérgio Fantini

Cópias e reproduções permitidas pelo autor

e-mail: rodrigoleste@yahoo.com.br

Ilustração capa: Detalhe de "Biblioteca" - pintura à óleo de Maria Helena Vieira da Silva

O esplendor do Império
















Novela em forma de e-meio

Mario Drumond

33 capítulos publicados ao ritmo de um capítulo por dia, todos os dias.

Da série Escritos anti-imperialistas

Escrita entre 11 de setembro e 30 de dezembro de 2008.
Publicada neste Suplemento entre 10 de março e 12 de abril de 2009.

Belo Horizonte – Brasil

Revisão: Frederico de Oliveira

Capítulo 1

Enquanto se ajeitava na poltrona, Taquinho não conseguia se conter de tanta felicidade e ria à toa consigo mesmo. Era a primeira vez que viajava de avião, fato que ampliava a emoção daquela viagem e coroava de sucesso cinco anos de batalhas e ralações. Fazia 23 anos justamente nesse dia que acabava de eleger como o mais feliz de sua vida, ao afivelar e apertar o cinto de segurança. Taquinho dera de presente a si mesmo a realização de um grande sonho: ele decolava de Brasília em vôo direto para Nova York, cidade que para ele era a capital do paraíso na Terra.

De lá não pretendia retornar tão cedo, tinha tudo planejado. É verdade que o sonho começara a ser acalentado bem antes; desde criança Taquinho alimentava sua admiração pelo país do hambúrguer e do hot dog, e nunca lhe faltou estímulo para isso, desde as primeiras revistas em quadrinhos, brinquedos, desenhos animados e jogos eletrônicos até as inúmeras mídias atuais, impressas e eletrônicas. Mas a data inicial de sua concretização ele atribuía ao dia em que completou 18 anos.

A partir de então, se tornou o dono de seu nariz e não precisava mais da assinatura dos pais para tomar decisões. De imediato, transferiu-se para o horário noturno de uma escola pública onde completou o curso secundário sem o menor esforço e decidiu que, se um dia ingressasse numa universidade, isto se daria nos EUA. Assim, o dinheiro que o pai enviava para pagar a escola particular ele guardava numa conta de poupança para o seu grande projeto. E tinha o dia inteiro disponível para ralar de bicicleta, fazendo entregas e serviços de office-boy, com o que apurava um bom dinheiro que também ia para a mesma conta.

Taquinho chegou a evitar namoradas para não gastar o dinheiro que economizava e não comprometer o futuro de seu projeto. Quase não gastava de suas economias, e tinha de se conter para ir uma só vez por semana ao McDonald’s, sempre aos sábados à noite, e devorar o seu sanduíche predileto, o “quarteirão-com-queijo”, acompanhado de meio litro de Coca Cola. No mais, valia-se da comidinha caseira de dona Lourdes, sua mãe, costureira afamada pelo talento em tudo o que dizia respeito a agulha, linha e tesoura, com o que tirava o suficiente para sustentar uma vida modesta mas digna, para ela e o filho. Moravam na casa que fora do pai dela, o avô Pedro, falecido há pouco mais de seis anos (do embarque de Taquinho) e que também fora mestre dos mesmos dons que a filha herdou, e deixou fama de melhor alfaiate da região. O avô Pedro fora para Taquinho um pai e um amigo, porque o marido de dona Lourdes, seu Eustáquio, oficial mecânico da Vale do Rio Doce, era um pai ausente na vida dele; um zero à esquerda que, quando muito, aparecia uma vez por mês, num fim-de-semana, e só garantia o mencionado dinheiro para pagar a escola e uma muito irregular ajuda à esposa para o pagamento das contas da casa.

A casa era a mesma em que nascera dona Lourdes, logo quando o pai dela a adquirira, no início dos anos 50; uma casa pequena de três quartos, um tanto envelhecida, mas conservada com carinho e asseio, e que ocupava um terreno relativamente grande, rodeada de quintal, varandinha e jardim. Ficava na paróquia da Igreja de N. S. Lourdes, a santa que deu o nome e tornou-se padroeira da mãe de Taquinho, e da qual ela manteve-se devota, como Filha de Maria e voluntária do Lar das Crianças, entidade beneficente mantida pela casa paroquial. Sua mãe, dona Laila, morrera do parto, no mesmo dia em que lhe dera à luz, e seu Pedro não mais se casou, dedicando-se somente ao ofício e à filha única, com a valiosa ajuda da velha negra Honória, empregada da casa, babá e mãe substituta da menina até se despedir da vida, pouco depois de Lourdes completar quinze anos. Na época da aquisição da casa, era ali um subúrbio pobre. Hoje é o Bairro de Lourdes, bairro quase central e de classe média próspera da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais.

Dali, Taquinho saía de bicicleta todas as manhãs, de segunda a sexta, fizesse sol ou chuva, voltava para almoçar com a mãe, fazia uma breve sesta, e de novo ia pedalar cidade afora até às cinco ou seis da tarde. Nem todas as noites ele ia à escola, só quando necessário para não perder o ano. Assistia ao jornal e a um ou outro capítulo de novela na televisão com sua mãe, conversavam um pouco e depois ia para o seu quarto burilar o plano de viagem. Dona Lourdes não era contra, mas também não era entusiasta dos planos do filho. Às vezes, ela citava o pai, que vivera as agruras da emigração em vários países, inclusive os Estados Unidos, onde vivera, criança, no início dos anos 30, e lá comera o “pão que o diabo amassou”: “se tem um paraíso na Terra” – dizia seu Pedro – “ele está bem aqui, no Brasil”. Taquinho retrucava que os tempos eram outros e que agora, se tivesse nascido nos EUA, ele poderia até ser um astronauta da NASA. – “Que futuro tenho aqui, nessa merda de cidade?” – questionava Taquinho, embaraçando a desconfiada mãe.

Mas os planos de Taquinho não eram como os de muitos de seus concidadãos e colegas de entusiasmo com a metrópole. Não, não era o caso dele o modelo de Mozart (pronunciavam Mozár), um exemplo célebre na cidade, que fora com a mão na frente e a outra atrás e se deu bem trabalhando no setor de mudanças no interior do país, onde agora vive numa cidadezinha ostentando casa cafonérrima com piscina, mulher loura e filharada gorda. De lá, fica enviando fotos que circulam na cidade toda, como se para fazer inveja. Até levou os pais, que não se adaptaram e acabaram voltando para Valadares.

Os planos de Taquinho eram ambiciosos. Foram minuciosamente detalhados ao longo de três anos, junto com um funcionário de uma agência de turismo que era experiente no negócio e até ficou seu amigo, tendo lhe dado dicas muito boas. Taquinho queria chegar pela porta da frente, no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, onde pretendia fixar residência e só voltar ao Brasil vez ou outra, curtindo umas férias. Pensava também em levar a sua mãe algum tempo depois de lá se estabelecer, e tirá-la de uma vez por todas da vidinha provinciana em que a via, desperdiçando talento de costureira.

E ia com uma grana razoável, não chegaria lá na pindaíba, dependendo de favores. Comprara um big pacote turístico de seis mil dólares e levava mais quatro mil para os gastos iniciais. Calculara tudo como se fosse um investimento, era esperto e inteligente.

O pacote era para três meses de permanência (para mais que isto não conseguiria visto) e incluía curso intensivo de inglês (o amigo tinha lhe dado a dica: aprender inglês lá e não gastar com cursinhos mixurucas daqui, que não adiantam nada: “Você chega lá e nem sabe dar bom dia”). O curso duraria um mês inteiro e era em Orlando, na Flórida, onde ficava a Disneyworld (conhecê-la era sonho que ele cultivava desde que se entendia por gente), também incluída no pacote, com dois fins-de-semana de hospedagem em hotel da própria Disney, ingressos para atrações pré-escolhidas e direito a acompanhante na primeira estadia (ele convidara um amigo que morava em Nova York, o qual se oferecera para ser o seu guia introdutor na metrópole). Ao fim do curso, calhava exatamente a realização de outro sonho há muito acalentado: um show ao vivo de Madonna, que estava agendado em Washington, DC, onde encontraria de novo o amigo e depois iriam juntos para Nova York, de trem. Tudo já no pacote, o curso, as passagens, os hotéis, a alimentação, os ingressos do show, etc. Ao fim de um mês, se nada mais desse certo, ele teria realizado a metade do seu grande sonho: conhecer a Disney, aprender inglês e ver Madonna. E teria ainda quatro mil dólares e dois meses para realizar a outra metade: ser cidadão da “América” (que era como ele e os “colegas” valadarenses chamavam os EUA).

O maior problema seria o de conseguir o visto, mas deu tudo certo. Ele dera sorte, pois tinha nascido em Belo Horizonte, onde os pais, logo após se casarem, vieram residir para que seu Eustáquio fizesse o treinamento na Vale, e aqui pensavam estabelecer-se em definitivo. A agência de turismo tinha seus macetes, e conseguiu um atestado de residência “laranja” para ele em BH. Governador Valadares, para o consulado, todo mundo sabia, era nome “mais sujo do que pau de galinheiro” e não podia constar do pedido, ou o visto não saía. Resolvido isto, para Taquinho havia outro risco, pequeno, segundo o agente - o seu próprio nome: José Eustáquio Raghid Varela. O Raghid materno poderia dar galho, por isto só ia por extenso onde não podia estar de outra forma; no mais, era José Eustáquio R. Varela. Taquinho passou dois dias acampado na fila que se formava na porta do consulado dos EUA, no Rio de Janeiro, debaixo de um calor de 40 graus e tremendo de medo. Mas, outra vez, deu sorte. Foi atendido por um brasileiro substituto e relapso que mal conferiu a documentação, lhe fez umas três perguntas cujas respostas Taquinho tinha ensaiadas e na ponta da língua, e concedeu-lhe o almejado visto.

Taquinho relaxou enquanto sentia a força da aeronave decolando, o ar fluido se tornando sólido e o poder dos motores distanciando-o do solo que ele observava pela janelinha, sem desgrudar, vendo as coisas diminuindo de tamanho, as pessoas virando formiguinhas... eis então as primeiras nuvens passando, e ele sobre o imenso colchão branco banhado de sol. Pôs os óculos escuros, recostou-se na poltrona e começou a repassar os planos: chegaria numa terça de madrugada e teria até o amanhecer para se desvencilhar da alfândega. Tomaria um táxi até o endereço do amigo cicerone, cuja chave do apartamento lhe seria deixada com uma amiga que trabalhava na caixa de uma lanchonete, ao lado da entrada do prédio. Descansaria até o fim da tarde, e, quando o amigo chegasse do trabalho, decidiriam o que fazer na primeira noite. Nos dias seguintes, junto com o amigo (que providenciara uma licença no serviço), compras de roupas, agasalhos, tênis, etc, e o laptop que seria, enfim, o seu primeiro e ansiado PC (Taquinho às vezes usava o computador da agência de turismo e tinha algum traquejo na máquina). Na sexta, ônibus para Orlando e a Disneyworld. Na segunda, o amigo retornaria a NY e ele começaria o curso de inglês na Universidade da Flórida, onde ficaria hospedado. Ao fim do curso, ônibus para Washington, reencontraria com o amigo, iriam ver Madonna e, depois, trem para Nova York e a alvorada da sua vida!

Num determinado momento, quando sobrevoavam o imenso mar verde da Amazônia, foi anunciada uma inesperada escala em Manaus para checagem da aeronave. Os passageiros demonstraram temores, mas, para Taquinho, que não tinha nenhum medo de avião, o maior problema era o desacerto de seus planos que um atraso maior poderia causar. “Essas empresas brasileiras” – pensou atazanado – “bem que eu queria uma empresa americana; mas o preço do pacote subiria quase mil dólares!” De fato, não deu outra. Em Manaus, depois de interminável espera, foram avisados que a aeronave não poderia prosseguir. Outra aeronave seria alocada para o vôo e só estaria disponível no dia seguinte de manhã. “A empresa se encarregaria da hospedagem e alimentação dos passageiros até o novo embarque” – disse uma funcionária aos passageiros.

Porém, Taquinho, astuto, durante a espera reparou que um vôo da American Airlines decolaria de Manaus para Nova York ainda naquela noite, e deu uma sapeada no balcão da empresa, levando uma conversa com o seu pessoal. Lá ficou sabendo que ainda havia lugares e, se a empresa dele autorizasse, ele embarcaria. Taquinho tinha boa lábia e levou um lero com o gerente da empresa brasileira convencendo-o de que era melhor negócio embarcá-lo do que bancar a sua estadia em Manaus. O gerente topou, o negócio foi feito, foram providenciados os papéis, a bagagem foi trocada de avião, e Taquinho embarcou.

Foi um vôo perfeito que pousou no aeroporto John F. Kennedy, de Nova York, exatamente às 08h45 (hora local) do dia 11 de setembro de 2001.

Capítulo 2

Capítulo 2

Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque.

Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma névoa de spray mal cheiroso.

Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”, só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em levá-lo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A.

Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria.

Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela, onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois, passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho trazia na sacola.

Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois (Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados.

Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França), mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá.

Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho, pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas, sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!”

Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disse-lhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica! Bye and good luck!”

Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro, homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em lançamento.

A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo; quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas que tomou até chegar ali, exausto e bufando.

Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então, difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo, se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele. Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca, tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação, a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas.

Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação, acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou: GUANTÂNAMO.

Capítulo 3

Capítulo 3

Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida” ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor.

Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas.

Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale.

Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um.

Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores.

Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial.

Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião.

Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade.

Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.

A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis.

Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.

O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.

Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.

Capítulo 4

Capítulo 4

Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã, que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se.

Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só.

Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos.

O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.

Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção.

Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres.

Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”.

Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.

Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.

Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta.

Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.

Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”.

Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.

Capítulo 5

Capítulo 5

O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com “pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abri-lo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro.

De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.

Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério.

Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”.

Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.

Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.

Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo.

“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.

As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.

“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.

A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo.

No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”.

Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade.

Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.

Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.

Capítulo 6