Capítulo 6

A pobre senhora não sabia o que fazer. Não estava acostumada e nem gostava de tomar decisões importantes. Lembrou-se de que a última decisão importante que tomara em sua vida foi a de deixar Belo Horizonte com Taquinho para voltar a morar com o pai em Valadares. E demorou quase dois anos para tomá-la desde que pensou nela pela primeira vez. Quando o fez, o marido estava de viagem, e ela comunicou-lhe por telefone. Disse a ele que não estava se separando, mas voltando para a sua cidade, onde tinha trabalho e a companhia do pai. O marido retrucou que ficaria mais difícil encontrarem-se, porque naquela época não havia vôos de carreira para Valadares, e isto complicava as coisas para ele no emprego. Mesmo assim, ela fez as malas, pegou Taquinho e foi para a casa do pai.

Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento. Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho. Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em comum, para eles, não se tornara necessária mais.

Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu coração de mãe e, de certa forma, a consolava.

Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso; Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho, há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”, palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte.

Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo, informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio, quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José Eustáquio.

Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazê-la dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta:

- Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem?

Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o:

- É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são?

- Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se recupere.

Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza, esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia nele, linha por linha.

Capítulo 7