Capítulo 26

De seus aposentos na casa paroquial, padre Antonio observava a limpeza do cemitério e rememorava aquele diálogo, quase todo um monólogo da infeliz falecida. Depois de derramar uma torrente de lágrimas, ela retomara uma serenidade estranha e foi surpreendentemente objetiva e direta. Entregou ao padre a pasta de couro contendo os documentos de herança, propriedade, bens de valor e contas bancárias que possuía. Pediu a ele que providenciasse junto ao tabelião e ao escritório do Dr. Gusmão a transferência de tudo para o Lar das Crianças, inclusive as possíveis indenizações que estava para receber da Vale, pela via de um acordo muito favorável às viúvas. Pedia-lhe que aceitasse ser nomeado procurador dela para o que necessitasse ser feito ou decidido em relação a seus bens e direitos. Incluía também um projeto, elaborado algum tempo antes por uma de suas freguesas, arquiteta, do prédio da nova sede do Lar no terreno em que ficava sua casa, quase triplicando a capacidade da creche para 800 crianças, em instalações modernas e mais apropriadas. O acordo indenizatório haveria de cobrir as despesas da obra e, se mais fosse necessário, a prefeitura e o governo ajudariam, com certeza.

Em troca, só pedia duas coisas.

Que o padre conseguisse a sua aceitação como monja laica no mosteiro das Carmelitas Descalças, em Belo Horizonte, ou em outro que achasse conveniente, para que lá vivesse em sua solidão e em orações até o dia de sua morte. Oferecia ao mosteiro os seus dotes de costureira, de cozinheira e até de faxineira, ou se colocava à disposição para qualquer outra tarefa de que fosse capaz. E a sua fé cristã inabalável. E que, ao morrer, tivesse seu corpo trazido a Valadares e enterrado no cemitério da Igreja de Lourdes, junto aos de seus pais.

Sabemos que o padre só pôde atender a segunda parte do segundo pedido. O primeiro, por formalidades burocráticas, eclesiásticas e cartoriais, demorou algo mais que o esperado e estava a poucos dias de concretizar-se quando, na madrugada do dia 31 de março, ele recebeu um telefonema de dona Lourdes em que ela lhe dizia aflita e em convulsões:

- Venha, padre, por favor, e traga água benta. Acho que estou morrendo.

Ele correu até ela acompanhado de Graça, enquanto Belizário localizava o Dr. Leandro. Encontrou-a nos últimos suspiros e ela faleceu durante a extrema-unção. A ambulância chegou logo em seguida, junto com Dr. Leandro, que nada mais teve a fazer senão oficializar óbito. O médico atribuiu ao excesso de remédios e tranquilizantes, com que dona Lourdes ultimamente se automedicava, como a causa mais provável do acidente cardíaco que a matou, o que, ao menos em tese, pôde ser confirmado nos exames de autópsia. Sem esconder a irritação e o inconformismo, pois gostava muito da falecida, Dr. Leandro, que era um militante socialista convicto, culpou o sistema capitalista pela morte dela. Um sistema que, no Brasil, é dominado pela indústria farmacêutica – segundo ele, a “indústria da doença” e, não, da saúde – e que maldosamente fazia confundir pacientes clínicos com consumidores, e produtos farmacêuticos com mercadorias inofensivas.

Luzia bate na porta: - “O pessoal da prefeitura já está aqui para a reunião, padre”.

A reunião durou cerca de uma hora, depois do que padre Antonio foi ter com Cirineu, que dava os últimos toques na limpeza do cemitério.

- Infelizmente, vamos ter de retirar as azaléias do túmulo de Lourdes, Cirineu.

- Tirá as azaréia de do’a Lurde?! – retrucou, pasmo, o bom zelador.

- Lourdes não deixou descendência e não tinha parentes; e, para a vida nesta Terra, os mortos são todos iguais, Cirineu – disse o padre em tom filosófico, com o olhar no infinito. - Além disso, os tempos e as coisas mudam. A praga da dengue está aí e a prefeitura quer o cemitério todo calçado e cimentado, dentro de normas técnicas e legais, entre outras exigências. Eles mesmos se encarregarão da obra, mas eu quero que você supervisione tudo...

- Entonce divia de prantá ao menos u’a arvre pru conforto das arma. Isso aqui todo acementado vai ficá mais prus forno dos inferno que prum campo santo.

- É uma boa idéia, Cirineu, vou pensar. Sabemos o quanto nos entristece ter de desfazer o que Lourdes fez com tanto zelo, mas arranque tudo hoje mesmo; eu nem quero estar por perto. O pessoal da prefeitura foi inflexível e eu não tive outra saída senão me comprometer em ajudá-los. Se der, aproveite o carreto que vem recolher a caçamba da limpeza no fim da tarde, quanto mais rápido fizermos isto menor será a nossa dor – e afastou-se cabisbaixo, enxugando os olhos com um lenço.

Depois do almoço, padre Antonio foi a seus aposentos para desfrutar uma pequena sesta, como sempre fazia. Cochilou por cerca de quarenta minutos, como de costume. Levantou-se, foi à escrivaninha e abriu a Bíblia a fim de escolher trechos para duas missas que celebraria ainda naquele dia.

Num dado momento, Cirineu bateu e recebeu licença para entrar. Trazia na mão um embrulho de plástico e exibiu-o ao padre.

- Tava interrado debaixo do úrtimo pé de azaréia qui do’a Lurde prantô. Tá cumu tava, num mixi nada, só alimpei as terra qui garraro pru fora.

Ao pegar o volume, padre Antonio arregalou os olhos e não teve dúvidas de que estava recebendo em mãos a misteriosa mensagem de Taquinho.

- Alguém mais viu isto, Cirineu?

- Só eu mermo, padre, o pessoár tinha ido tudo imbora quando comecei a rancar as pranta. Truce direto pru sinhô, vi qui é trem compricado purisso truce aqui.

- Você fechou a cova de onde tirou isto?

- Não, cabei de batê cum a pá nesse troço. Foi nesse instantim, e’a a úrtima que fartava prá tirá. As otra já tinha rancado e fechado os buraco tudo cunforme o sinhô pidiu.

- Então, faz o seguinte: deixe tudo lá como está. A prefeitura vai começar na quarta-feira e temos amanhã o dia todo para prepararmos as coisas para eles. Tenho duas missas hoje e só vou poder saber do que isto se trata mais à noite. Amanhã digo a você o que vamos fazer. Pode ir.

- Tá paricendo cinza de cremado ou coisa de pagão, mas num cridito que do’a Lurde, frevorosa cumu era, ia fazê u’a coisa dessa num campo santo, ó xente! Já pode isso, padre?

Era conhecida na paróquia a pouca paciência de padre Antonio com a perguntação de Cirineu, um curioso contumaz.

- Cirineu, Cirineu, vamos saber primeiro do que se trata, certo? E não diga nada a ninguém. Amanhã, antes do café, venha até aqui, e resolvemos o que fazer. Agora preciso trabalhar. Até amanhã.

- Inté manhã, padre.

Capítulo 27