Capítulo 17

O leitor já sabe que nossa narrativa não é a mesma do texto de Taquinho, nem é extraída exclusivamente de seus escritos. Neles, o jovem autor concentra-se num relato objetivo dos fatos e de forma a não comprometer a resistência islâmica, os que o ajudaram e com quem colaborou.

No que definimos lá atrás como a terceira parte do seu texto, o sufi não existe como tal; é mencionado só pelo codinome como um dos líderes da resistência ou como “meu preceptor”. Assim também, o palacete de Shakir é o “esconderijo da resistência” e Zahirah “uma guerrilheira”. Tudo é descrito e relatado sem detalhes que possam levar a identificação de pessoas, de cenários e localizações precisas, a não ser os que não os comprometem e estão relacionados com os propósitos da redação.

Tratou José Eustáquio Raghid Varella de redigir um memorial, inclusive para fins de prova judicial, cuja saga pudesse ser cotejada com fatos históricos, notórios e pessoais por onde transitaram suas vicissitudes e aventuras, além de poder ser comprovada em farta documentação paralela, concordante com as informações que ali declara e jura como verdadeiras. Nessa terceira e última parte do documento, por razões óbvias, o autor é o único protagonista identificável. Num anexo ao texto principal, dois coadjuvantes declaram que se identificariam como testemunhas, se a tal fossem chamados por juízo imparcial.

Além disso, ele se propôs também a fazer uma defesa da causa e da cultura islâmicas, aplicando a moral e as bases da religião em que fora iniciado na análise dos fatos, na fundamentação das razões e na argumentação crítica. Não economizou citações do Alcorão e de vários eminentes autores islâmicos e ocidentais para sustentar razões, fundamentar opiniões e apoiar argumentos, seja em favor da causa que ali defendia, seja para subsidiar moral e jurisprudência, seja para reivindicar justiça e paz.

Por tais motivos, dona Lourdes, a não ser por algumas sutilezas que lograra captar nas entrelinhas, nos achados subliminares de raras passagens ou nas cartas anexadas ao relato documental, não teve acesso à melhor parte da nossa história. Aquela em que Taquinho, vivendo no palacete do sufi, cercado de cordialidade, respeito, admiração e humanidade, passou pela sua segunda metamorfose. A primeira, em Guantânamo, pôde ser relatada por ele nos detalhes, e estes nós optamos por não penetrá-los. Mas, da segunda, aquela que mais confortaria o coração de uma mãe ao se inteirar dos sofrimentos por que passara o seu filho, ela apenas tomara conhecimento que algo de fato importante e positivo ocorrera, mas só na imaginação ela poderia se aproximar um pouco do que exatamente ocorrera, e como.

Ela não ficou sabendo do grau de amizade dele com o sufi e com Fadil, da ternura e da dança de Zahirah, do haxixe, das leituras das “Mil e uma noites” e de tantas outras obras primas, dos aposentos onde se hospedara o filho, dos belos jardins que os rodeavam, da nobreza mourisca daquela família e da sua residência, nem de muitos outros pormenores de que pudemos desfrutar naquelas passagens, e ela não. Em raras passagens, Taquinho pode descrever algo mais que um sumário dos fatos, com mais detalhes sobre como exatamente lhe ocorreram, e o leitor se lembrará daquele em que ele estava de terno, gravata e turbante depois de ordenado Mujahid, que tanto a comoveu.

Eis porque, a ponto de finalizar a penosa leitura do documento, a pobre mãe se via embaralhada em completa confusão mental. Ela se sabia intelectualmente incapaz de alcançar toda aquela informação, composta com erudição, cultura e conhecimentos muito acima daqueles a que porventura ela tivera acesso em toda a sua vida. Orgulhava-se do filho ter alcançado tal destreza, nunca duvidou de que ele tivera esse talento, mas, mesmo assim, ficou surpresa. Porém, sua formação católica, a moral provinciana e os preconceitos com que construíra sua pobre informação sobre as coisas e o mundo, faziam-na receosa para ousar um julgamento sobre o que lera e sobre o que se passara com o filho.

Nós vamos deixá-la, por enquanto, em sua amarga solidão, a noite entrando em altas horas, sentada na mesa diante dos papéis do filho, pensativa e atônita ao mesmo tempo, depois de quase 20 horas de dedicação ininterrupta à leitura, repetindo-a muitas vezes nas passagens mais complexas, ou a ela inacessíveis, para tentar buscar-lhes o entendimento pleno, a maioria com pouco ou nenhum êxito. A única luz acesa na modesta casa, a atmosfera densa e silenciosa que lhe envolvia o espírito, a excitação, a angústia e a insônia.

Voltemos aos fatos de Bagdá.

Capítulo 18