Capítulo 3

Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida” ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor.

Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas.

Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale.

Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um.

Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores.

Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial.

Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião.

Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade.

Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.

A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis.

Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.

O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.

Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.

Capítulo 4