Capítulo 12

Voltamos àquele momento em que encontramos Taquinho deitado em seu leito, rememorando os fatos que lhe passaram depois de Guantânamo.

Relembrava agora o dia 10 de setembro, dia em que comemorou 26 anos, quando, logo após o desjejum, recebeu de Zahirah uma linda túnica bordada, de corte apropriado a iniciandos, e um belo turbante, ambos feitos por suas delicadas mãos. O broche a ser colocado no turbante foi prometido pelo sufi para a cerimônia da Chahada.

Era uma sexta-feira e, à noite, o sufi homenageou o aniversariante com uma reunião íntima, na biblioteca. Vieram Fadil e a esposa, e dois membros da cúpula da resistência que Shakir convocara para a assessoria jurídica da redação do memorial de seu discípulo. Serviram comes e bebes, inclusive os especiais para Taquinho, que estreava a túnica e o turbante, ainda um pouco desajeitado no uso de ambos. Zahirah e Bahija, esposa de Fadil, prepararam o narguilé de seis bocas e dançaram para eles. Ao fumar pela primeira vez o haxixe, orientado pela angelical Zahirah, e, sob o efeito mágico e delicioso das baforadas, vê-las dançando ao som lindo do bouzouk (um tipo de alaúde) tocado por Fadil, Taquinho se sentiu fisicamente transportado para o sortilégio dos sonhos mais belos e felizes que a vida possa conceder a um mortal.

A partir de então, todas as noites das sextas-feiras, logo após a oração de depois do pôr-do-sol, Zahirah preparava para ele um narguilé exclusivo, em seu quarto, e ambos brincavam de “Mil e uma noites”. Ela fazia a Sherazade e ele o sultão. Sempre vestido com a túnica e o turbante e sob o efeito inebriante do haxixe, ele ouvia a leitura de uma das histórias, com sotaque português, na voz aveludada de sua Sherazade. No final da leitura, ambos repetiam o mesmo diálogo que finaliza todas as histórias daquele livro mágico. Em seguida, faziam a última oração do dia e se despediam com beijos fraternais.

Nos sábados ou domingos, os dois usavam essas mesmas horas para ver os jornais da televisão ou para navegar na internet no boudoir (sala de costura) dela. Ela traduzia para ele as notícias da TV e depois conversavam muito. Ambos desprezavam a televisão, concordavam que era sempre a mesma porcaria em qualquer país e que era feita para gente burra e mal educada. Além do mais, as notícias são dadas de forma falaciosa, como se para cooptar o espectador e desinformá-lo. Bastava-lhes conferi-las na internet em determinados sites sérios e bem escritos para conhecer a informação correta. Por sua vez, Taquinho aproveitava a internet, nessas ocasiões, para ter alguma informação atualizada do Brasil, mas não registrou e-mail, correspondeu-se com alguém ou interagiu com sites ou blogs. Não porque tivesse dificuldades em operar na nova linguagem, mas porque achava que isto tomava muito do tempo precioso dele e o afastava de seus objetivos. Preferia usar o seu tempo escasso, nesses dias, para conversar com Zahirah.

Zahirah contou-lhe que era a única filha do sufi, e a mais nova (completara 21 anos em abril) dos nove irmãos, cada um com uma diferente esposa do pai. Um deles é Fadil, o mais velho, e todos atuavam na resistência. Dois haviam perdido a vida e outro estava desaparecido desde os bombardeios de Fallujah, onde era a sua base. A mãe dela morava na Arábia Saudita, em Medina; o sufi tinha providenciado a mudança de suas esposas para lá, desde o início da invasão. Queria que Zahirah fosse também, mas ela se recusou e não abriu mão de ficar perto do pai. Não tinha medo, os invasores respeitavam os sufis e sabiam o quanto lhes custava agredi-los. Evitavam bombardeios em locais habitados por religiosos célebres, eis porque as bombas sempre caíam longe dali. Mesmo assim, os jardins daquela casa eram famosos por serem povoados de belos pássaros cantores que desapareceram de Bagdá com o advento dos bombardeios.

Bagdá tornara-se uma cidade sem pássaros, e o quanto isto entristecia seus habitantes e o olhar de Zahirah! Eram refinamentos assim, em certos detalhes que em outras plagas sequer eram percebidos, que faziam Taquinho, a cada momento em que ia conhecendo mais, um entusiasmado admirador da arte, da religião, da cultura e do povo que o hospedava em meio à barbárie de que era vítima.

O cristianismo a que ele estava habituado no Brasil – meditava –, era de pura hipocrisia. Parecia-lhe que em todo o Ocidente pregava-se uma coisa e praticava-se outra, totalmente oposta. Guantânamo e o 11 de Setembro, suas causas e conseqüências, eram demonstrações contundentes. Sua mãe era exceção, na sua opinião. A reforçavam Zahirah e o sufi ao comentarem sobre os cristãos daquela região, dos quais dona Lourdes era descendente. Tanto muçulmanos como cristãos e demais crentes nos países do Oriente, dizia o sufi, são admirados pela fidelidade aos cânones de seus respectivos credos e não ao contrário, como ocorre no Ocidente. E entre todas as religiões, ensinava-lhe o mestre, é a islâmica a mais tolerante e a menos sectária na relação com as demais.

Mas nem tudo foram flores para Taquinho nesse período. Nos dois primeiros meses, passou por momentos de profunda depressão e desânimo, com crises de choro pelas más lembranças e por sentir-se culpado de ter se tornado motivo de sofrimento para os seus, em particular, a sua mãe. Curou-o Shakir, ao perceber que o jovem estava com “saudades” da sua terra e de si mesmo, e deu a ele um ensaio que escrevera na década de 1950 – quando conheceu o Brasil e aquela palavra –, cujo tema era o pensamento filosófico nativo em nosso país. O discípulo não só assimilou o remédio como passou a seguir a trilha nele assinalada. Começou a entremear os estudos filosóficos e religiosos com os textos da brasilidade e, com o concurso da boa brasiliana que o sufi mantinha em sua biblioteca, seguiu o roteiro do mestre, lendo os grandes brasileiros por ele citados, a começar dos mais recentes. Leu Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, contemporâneos ao escrito, degustando especialmente os ensaios filosóficos do último e concordando com Shakir serem “maravilhosamente bem escritos”. Em uma sentada, traçou Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, a seguir, continuou o percurso retroativo na nossa literatura pelas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Gregório de Matos, Antonio Vieira, até chegar em Anchieta e Manuel da Nóbrega. Ouviu Villa-Lobos, a partir de uma coleção de vinis do sufi.

Quanta vida perdi em futilidades e idiotices, e com plena saúde! – refletia Taquinho ao retomar as lembranças desses meses intensos de estudos e meditações, em meio às atribulações de saúde, em que não lhe faltaram dores, insônias, pesadelos e febres. Mesmo assim, pensava que tudo lhe estava vindo como uma benção. Revia o quanto eram mesquinhos os desejos juvenis de que se mal alimentara, desde as bobagens da Disney até o fanatismo por Madonna, para ficar só nos dois. Como ficavam reles os tão propagados “valores ocidentais” perto dos que agora conhecia!

Além disso, desfrutava os clássicos da cultura islâmica e ocidental: Avicena, Al Khwarazmi, Ibn Battuta, Saadi, Omar Khayam, Averrois, Al Jahez, ao lado de Camões, Shakespeare, Cervantes, Dante e tantos outros. Aprofundava-se no Alcorão pelas leituras das suratas e ayats (versículos) e os comentários eruditos de um mestre da magnitude de Shakir. Sentia-se imensamente grato a Fadil, ao sufi e à filha, e se via como sendo recompensado pelas desditas de que fora vítima.

Aprendeu que os muçulmanos consideravam também, como palavras de Deus transmitidas aos homens, o Evangelho de Jesus Cristo, os Salmos de Davi, a Torá de Moisés e o chamado livro perdido de Abraão (Ibrahim para eles). A arrogância cristã ocidental insistia, porém, em tachá-los de sectários - que injustiça! Vivera a sua juventude indiferente à leitura do Evangelho, apesar dos apelos de sua mãe, porque as mensagens divinas são desprezadas no ambiente antiespiritual que é imposto à sociedade e ao povo de seu país, em particular à sua geração. Este, sim, é sectário. Prova disso é que, até chegar à casa do sufi, ele só sabia da existência do Evangelho e do Alcorão, e, deste, só por causa das origens de sua família. Sobre os demais nunca tinha ouvido falar. Agora, tinha-os consigo e sempre que os abria, no recolhimento daquele retiro a que fora levado pelo destino, era como se mergulhasse em oceanos de sabedoria.

Naquele ano, o Ramadã começou em 15 de outubro. Sua saúde não permitia que fosse a Meca acompanhando o sufi e a filha. Por segurança, a resistência tinha decidido que ele não poderia ser conhecido por mais ninguém, exceto pelos membros da cúpula, e não deveria sair da casa do sufi. Assim, o quinto pilar do Islã, a peregrinação a Meca (Haj), ficara a ele impedido. Mas vinha cumprindo com muita fé, entusiasmo e disciplina, sempre sob a orientação do mestre e de Zahirah, o Salat, as cinco orações de cada dia, o Zakat, as dádivas rituais, que ele pagava com trabalhos leves de jardinagem e de bibliotecário que eram possíveis ao seu estado de saúde, e não lhe era difícil o Saum, o jejum durante o Ramadã, pois ele praticamente o observava o tempo todo. O primeiro, a Chahada, ele já a recitava e a aceitava de plena fé, sem, contudo, ainda ter sido autorizado pelo sufi a fazê-lo diante das testemunhas que oficializariam a sua conversão.

Como as orações eram feitas obrigatoriamente em árabe – e ele possuía bom ouvido –, acabou assimilando a sonoridade do idioma e até se comunicava razoavelmente nele, pelo menos nas relações cotidianas com o pessoal e os donos da casa. A semana em que o sufi e a filha estiveram fora, aproveitou-a para dar uma boa adiantada no seu relato, quase terminando a parte de Guantânamo, a que, por certo, lhe fora a mais difícil. Um de seus assessores, que era intérprete e tradutor do português para o árabe, não escondia o entusiasmo com as qualidades do jovem escritor e trazia-lhe com freqüência as sugestões do outro assessor, que era juiz formado nos EUA, a quem levava resumos em árabe dos textos que Taquinho ia produzindo.

Ao deixar a cama e ir ao banho ritual de purificação para a oração e o encontro daquela noite com o sufi, Taquinho decidiu levar ao mestre, pela primeira vez, a íntegra do que havia escrito até ali. Desde que iniciara o duro trabalho de memória, este sequer fora mencionado nos encontros do discípulo com o mestre.

Era hora de apresentá-lo, ainda que por finalizar, e consultar o mestre sobre o que meditara para continuá-lo. Naquela noite, iriam ensaiar novamente a Chahada, cuja cerimônia se daria dentro de dois dias. Depois, ele iria ser submetido à sabatina como postulante a Mujahid. Esta seria conduzida à mercê de Deus, como costumavam dizer, e a honra somente lhe seria concedida pela unanimidade dos presentes. Se bem sucedido, ele passaria a ser membro da elite da resistência e ficaria à disposição do alto comando.

Capítulo 13