Capítulo 11


“Fui um idólatra!

“Desprezei os valores do saber, da fé e da humildade e reverenciei ídolos de matéria plástica e elétrons coloridos, vazios de essência e substância. Deixei-me ser escravizado e fui presa fácil de armadilhas criadas para alimentar a ganância insaciável de falsos deuses. Porém, e não poderia ser de outra forma, meu espírito vivia em permanente estado de insatisfação, o que me impelia mais e mais ao servilismo e à vileza.

“Em busca de algo que eu não sabia o que era, viajei em vão por continentes e mares. No início, por minha própria e equivocada vontade, e, depois, preso e indefeso nas garras de algozes poderosos. Lentamente, eles me sugarem todas as esperanças e forças vitais, e, enfim, me descartaram. Fiquei só, física e espiritualmente, no meio do deserto.

“Somente agora, depois da primeira experiência pessoal com a benevolência dos justos, que dali me retiraram e trouxeram-me a esta nobre casa, é que tomei consciência: o que eu ansiosamente procurava alhures sempre esteve bem aqui, comigo, como um facho de luz no interior do meu próprio ser e que a cegueira da alienação não me permitia enxergar.

“Que as poucas linhas restantes daquelas que porventura me foram dedicadas no Grande Livro descrevam o meu encontro com o esplendor dessa luz. Por mais insignificante eu a tenha tornado com o peso de meus pecados, por resgatá-la tudo farei e, tendo êxito, me sentirei recompensado na eternidade.

“É o que, com fé e humildade, peço a Deus, se acaso posso ser digno da Sua misericórdia e do Seu perdão para que me julgue merecedor de tamanha glória.

“Raghid”

Shakir era um místico e um sábio respeitado em todo o mundo islâmico. Gozava de grande prestígio também em altas rodas ocidentais. Seu verdadeiro nome é Hamid al-Basri (mas nós continuaremos a chamá-lo pelo pseudônimo que deu a si mesmo como preceptor de Faraj-Taquinho), cuja ascendência, sempre por linha paterna, alguns experts em genealogia afirmam que vai aos primórdios do sufismo e da cultura islâmica depois da Hégira, lá pelos séculos VII e VIII d.C. (a Hégira corresponde ao ano de 622 da era cristã). Pertencente a uma dinastia de místicos de longa tradição (a percepção espiritual na religião islâmica é uma graça de Deus e não uma faculdade que possa ser adquirida pela vontade humana), diplomata de formação e erudito, é também doutor autodidata em Filosofia e Matemática, com reconhecimento honoris causa em afamadas universidades islâmicas e ocidentais, e autor de várias obras publicadas e muito citadas em todos esses ramos do conhecimento.

Estava organizando o consulado do Iraque em Coimbra, Portugal, país onde residia com a filha havia quase dez anos, não só como diplomata, mas, também, como pesquisador da história e do pensamento islâmicos no período de ocupação da Península Ibérica. Ao final do ano 2000, com a eleição fraudulenta de George W. Bush, entendeu que a segunda invasão ao seu país se tornara uma ameaça real e decidiu por retornar a Bagdá. Ali, assumiu seu posto na alta cúpula da resistência, organizando-a e preparando-a para invasão, depois da qual passou a atuar em duas frentes distintas.

Por seu completo domínio da língua inglesa, atuava política e diplomaticamente perante os invasores, buscando a atenuação das catástrofes que causavam em seu país, ao mesmo tempo em que comandava pessoalmente a luta armada, como membro do alto comando da guerrilha de resistência. Fazia isto com relativa facilidade, uma vez que os oficiais e políticos norte-americanos envolvidos no front não dominavam o árabe, e menos ainda a cultura e os costumes islâmicos. Tinham de se valer de intérpretes, os quais eram, quase todos, membros da resistência infiltrados, quando não era o próprio Shakir a exercer o papel. Os poucos invasores que tinham algum domínio do árabe não tinham a menor percepção das sutilezas de linguagem, cultura e hábitos muçulmanos, e eis que era facílimo confundi-los, driblá-los e enganá-los. Muitas vezes, Shakir despachava com membros da resistência bem diante deles, que pensavam estar tratando com políticos, chefes de tribos ou de comunidades locais. E os pouquíssimos norte-americanos ou seus aliados europeus que alcançavam um entendimento mais sofisticado sobre onde estavam se metendo, acabavam por aliarem-se à resistência, haja vista os descalabros que seus compatriotas cometiam contra algo que tanto admiravam. Não raro, recebiam informações privilegiadas de dentro do próprio Pentágono, especialmente depois da destruição e saqueio dos preciosos Museu e Biblioteca de Bagdá.

A reflexão de Raghid surpreendeu-o, ainda que desde a primeira vez que o viu percebera a força espiritual que havia latente naquele jovem torturado. O conteúdo sensível, a beleza da caligrafia, a composição sem remendos, rasuras nem correções, posta com limpeza e senso de proporção na folha de papel, sem que fosse necessário rascunhá-la, eram virtudes de redação pouco comuns atualmente, mesmo nos países islâmicos. O jovem iniciando demonstrava ter talento, apesar do estilo tipicamente ocidental e um tanto rebuscado, com traços fortes e originais, mesmo quando afetados de inspirações orientais, e, às vezes, excessivamente vigorosos para o gosto árabe.

Lembrava algo do que Shakir observara no chamado barroco brasileiro em relação à arquitetura e à pintura, sacras e profanas, quando visitou a cidade de Diamantina, no interior do Brasil. Uma postura criativa de altivez desinteressada e irreverente, o fazer com alegria e liberdade, muitas vezes à beira do deboche, características que o encantaram na produção artística brasileira em geral. Postura esta que perturbava e até irritava a carrancuda e interesseira Europa, em particular os anglo-saxões. Entre os latinos, desde os portugueses e espanhóis até os franceses e italianos, Shakir desconfiava que havia uma ponta de inveja pela liberdade criadora dos latino-americanos.

O escrito do jovem não deixava margem de dúvidas sobre sua disposição em ir direto aos objetivos que se propôs, mesmo que tenha se valido de sutilezas para dizê-lo. Pelo informe dos médicos, quanto mais próximo no tempo se desse a autorização para que agisse, mais possibilidades de êxito haveria, pois, apesar de apresentar recuperação inequívoca em certos sintomas graves e de demonstrar inesperada vitalidade, a tendência do paciente era a de um gradual enfraquecimento em direção à invalidez e ao falecimento, sem descarte de um possível colapso súbito de um ou outro de seus órgãos vitais mais atingidos.

Mas Shakir não abria mão da ética islâmica e dos rigorosos preceitos religiosos que envolviam aquela decisão, e acreditava que precisaria de uns oito ou nove meses para assegurar-se de que não os estaria infringindo. Ao ler o texto, reconsiderou, convencido de que o garoto se colocaria hábil para se postular um Mujahid em tempo bem menor. Era notável o progresso demonstrado em pouco mais de uma semana de acesso à literatura básica e à paz interior necessárias para que penetrasse no processo de autoconhecimento. Assim, mandou chamar Fadil e o instruiu para que comunicasse ao comando que tal expectativa fora alterada para dezembro próximo ou janeiro do ano seguinte.

E, no dia posterior ao da redação do texto, depois do desjejum, sentou-se com o discípulo na mesma mesa em que lhe deixara o escrito, e disse-lhe:

- Vejo que você tem talento de escritor e creio que não devo ter sido o primeiro a identificá-lo. Isto o torna um caso mais raro ainda do que inicialmente imaginávamos. Você é talvez o único sobrevivente de tão difícil passagem, que, além do mais, é capaz de relatá-la por escrito de forma convincente e precisa. Sei que é difícil o pedido que vou lhe fazer e deixo a você decidir se o atende ou não sem que tal decisão se reflita no nosso relacionamento. Muito seria útil à Humanidade um relato seu de tudo o que se passou com você e digo-lhe que tribunais existentes ou em formação em alguns países ocidentais poderiam se valer dele para atuarem com eficácia, a fim de por um termo nessas atrocidades. Você o faria?

- Posso tentar - respondeu prontamente Taquinho - mas vou precisar de papel, talvez, muitas folhas, porque haverá de ser longo e detalhado um relato que satisfaça tais propósitos, não? E, se for possível, gostaria de fazê-lo com certa privacidade, pois creio que assim vou ter mais chances de chegar a bom termo.

Naquele mesmo dia, o quarto de Taquinho ganhou uma escrivaninha, canetas e materiais para escrever e um pacote com 500 folhas brancas de papel ofício.

Capítulo 12