Capítulo 1

Enquanto se ajeitava na poltrona, Taquinho não conseguia se conter de tanta felicidade e ria à toa consigo mesmo. Era a primeira vez que viajava de avião, fato que ampliava a emoção daquela viagem e coroava de sucesso cinco anos de batalhas e ralações. Fazia 23 anos justamente nesse dia que acabava de eleger como o mais feliz de sua vida, ao afivelar e apertar o cinto de segurança. Taquinho dera de presente a si mesmo a realização de um grande sonho: ele decolava de Brasília em vôo direto para Nova York, cidade que para ele era a capital do paraíso na Terra.

De lá não pretendia retornar tão cedo, tinha tudo planejado. É verdade que o sonho começara a ser acalentado bem antes; desde criança Taquinho alimentava sua admiração pelo país do hambúrguer e do hot dog, e nunca lhe faltou estímulo para isso, desde as primeiras revistas em quadrinhos, brinquedos, desenhos animados e jogos eletrônicos até as inúmeras mídias atuais, impressas e eletrônicas. Mas a data inicial de sua concretização ele atribuía ao dia em que completou 18 anos.

A partir de então, se tornou o dono de seu nariz e não precisava mais da assinatura dos pais para tomar decisões. De imediato, transferiu-se para o horário noturno de uma escola pública onde completou o curso secundário sem o menor esforço e decidiu que, se um dia ingressasse numa universidade, isto se daria nos EUA. Assim, o dinheiro que o pai enviava para pagar a escola particular ele guardava numa conta de poupança para o seu grande projeto. E tinha o dia inteiro disponível para ralar de bicicleta, fazendo entregas e serviços de office-boy, com o que apurava um bom dinheiro que também ia para a mesma conta.

Taquinho chegou a evitar namoradas para não gastar o dinheiro que economizava e não comprometer o futuro de seu projeto. Quase não gastava de suas economias, e tinha de se conter para ir uma só vez por semana ao McDonald’s, sempre aos sábados à noite, e devorar o seu sanduíche predileto, o “quarteirão-com-queijo”, acompanhado de meio litro de Coca Cola. No mais, valia-se da comidinha caseira de dona Lourdes, sua mãe, costureira afamada pelo talento em tudo o que dizia respeito a agulha, linha e tesoura, com o que tirava o suficiente para sustentar uma vida modesta mas digna, para ela e o filho. Moravam na casa que fora do pai dela, o avô Pedro, falecido há pouco mais de seis anos (do embarque de Taquinho) e que também fora mestre dos mesmos dons que a filha herdou, e deixou fama de melhor alfaiate da região. O avô Pedro fora para Taquinho um pai e um amigo, porque o marido de dona Lourdes, seu Eustáquio, oficial mecânico da Vale do Rio Doce, era um pai ausente na vida dele; um zero à esquerda que, quando muito, aparecia uma vez por mês, num fim-de-semana, e só garantia o mencionado dinheiro para pagar a escola e uma muito irregular ajuda à esposa para o pagamento das contas da casa.

A casa era a mesma em que nascera dona Lourdes, logo quando o pai dela a adquirira, no início dos anos 50; uma casa pequena de três quartos, um tanto envelhecida, mas conservada com carinho e asseio, e que ocupava um terreno relativamente grande, rodeada de quintal, varandinha e jardim. Ficava na paróquia da Igreja de N. S. Lourdes, a santa que deu o nome e tornou-se padroeira da mãe de Taquinho, e da qual ela manteve-se devota, como Filha de Maria e voluntária do Lar das Crianças, entidade beneficente mantida pela casa paroquial. Sua mãe, dona Laila, morrera do parto, no mesmo dia em que lhe dera à luz, e seu Pedro não mais se casou, dedicando-se somente ao ofício e à filha única, com a valiosa ajuda da velha negra Honória, empregada da casa, babá e mãe substituta da menina até se despedir da vida, pouco depois de Lourdes completar quinze anos. Na época da aquisição da casa, era ali um subúrbio pobre. Hoje é o Bairro de Lourdes, bairro quase central e de classe média próspera da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais.

Dali, Taquinho saía de bicicleta todas as manhãs, de segunda a sexta, fizesse sol ou chuva, voltava para almoçar com a mãe, fazia uma breve sesta, e de novo ia pedalar cidade afora até às cinco ou seis da tarde. Nem todas as noites ele ia à escola, só quando necessário para não perder o ano. Assistia ao jornal e a um ou outro capítulo de novela na televisão com sua mãe, conversavam um pouco e depois ia para o seu quarto burilar o plano de viagem. Dona Lourdes não era contra, mas também não era entusiasta dos planos do filho. Às vezes, ela citava o pai, que vivera as agruras da emigração em vários países, inclusive os Estados Unidos, onde vivera, criança, no início dos anos 30, e lá comera o “pão que o diabo amassou”: “se tem um paraíso na Terra” – dizia seu Pedro – “ele está bem aqui, no Brasil”. Taquinho retrucava que os tempos eram outros e que agora, se tivesse nascido nos EUA, ele poderia até ser um astronauta da NASA. – “Que futuro tenho aqui, nessa merda de cidade?” – questionava Taquinho, embaraçando a desconfiada mãe.

Mas os planos de Taquinho não eram como os de muitos de seus concidadãos e colegas de entusiasmo com a metrópole. Não, não era o caso dele o modelo de Mozart (pronunciavam Mozár), um exemplo célebre na cidade, que fora com a mão na frente e a outra atrás e se deu bem trabalhando no setor de mudanças no interior do país, onde agora vive numa cidadezinha ostentando casa cafonérrima com piscina, mulher loura e filharada gorda. De lá, fica enviando fotos que circulam na cidade toda, como se para fazer inveja. Até levou os pais, que não se adaptaram e acabaram voltando para Valadares.

Os planos de Taquinho eram ambiciosos. Foram minuciosamente detalhados ao longo de três anos, junto com um funcionário de uma agência de turismo que era experiente no negócio e até ficou seu amigo, tendo lhe dado dicas muito boas. Taquinho queria chegar pela porta da frente, no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, onde pretendia fixar residência e só voltar ao Brasil vez ou outra, curtindo umas férias. Pensava também em levar a sua mãe algum tempo depois de lá se estabelecer, e tirá-la de uma vez por todas da vidinha provinciana em que a via, desperdiçando talento de costureira.

E ia com uma grana razoável, não chegaria lá na pindaíba, dependendo de favores. Comprara um big pacote turístico de seis mil dólares e levava mais quatro mil para os gastos iniciais. Calculara tudo como se fosse um investimento, era esperto e inteligente.

O pacote era para três meses de permanência (para mais que isto não conseguiria visto) e incluía curso intensivo de inglês (o amigo tinha lhe dado a dica: aprender inglês lá e não gastar com cursinhos mixurucas daqui, que não adiantam nada: “Você chega lá e nem sabe dar bom dia”). O curso duraria um mês inteiro e era em Orlando, na Flórida, onde ficava a Disneyworld (conhecê-la era sonho que ele cultivava desde que se entendia por gente), também incluída no pacote, com dois fins-de-semana de hospedagem em hotel da própria Disney, ingressos para atrações pré-escolhidas e direito a acompanhante na primeira estadia (ele convidara um amigo que morava em Nova York, o qual se oferecera para ser o seu guia introdutor na metrópole). Ao fim do curso, calhava exatamente a realização de outro sonho há muito acalentado: um show ao vivo de Madonna, que estava agendado em Washington, DC, onde encontraria de novo o amigo e depois iriam juntos para Nova York, de trem. Tudo já no pacote, o curso, as passagens, os hotéis, a alimentação, os ingressos do show, etc. Ao fim de um mês, se nada mais desse certo, ele teria realizado a metade do seu grande sonho: conhecer a Disney, aprender inglês e ver Madonna. E teria ainda quatro mil dólares e dois meses para realizar a outra metade: ser cidadão da “América” (que era como ele e os “colegas” valadarenses chamavam os EUA).

O maior problema seria o de conseguir o visto, mas deu tudo certo. Ele dera sorte, pois tinha nascido em Belo Horizonte, onde os pais, logo após se casarem, vieram residir para que seu Eustáquio fizesse o treinamento na Vale, e aqui pensavam estabelecer-se em definitivo. A agência de turismo tinha seus macetes, e conseguiu um atestado de residência “laranja” para ele em BH. Governador Valadares, para o consulado, todo mundo sabia, era nome “mais sujo do que pau de galinheiro” e não podia constar do pedido, ou o visto não saía. Resolvido isto, para Taquinho havia outro risco, pequeno, segundo o agente - o seu próprio nome: José Eustáquio Raghid Varela. O Raghid materno poderia dar galho, por isto só ia por extenso onde não podia estar de outra forma; no mais, era José Eustáquio R. Varela. Taquinho passou dois dias acampado na fila que se formava na porta do consulado dos EUA, no Rio de Janeiro, debaixo de um calor de 40 graus e tremendo de medo. Mas, outra vez, deu sorte. Foi atendido por um brasileiro substituto e relapso que mal conferiu a documentação, lhe fez umas três perguntas cujas respostas Taquinho tinha ensaiadas e na ponta da língua, e concedeu-lhe o almejado visto.

Taquinho relaxou enquanto sentia a força da aeronave decolando, o ar fluido se tornando sólido e o poder dos motores distanciando-o do solo que ele observava pela janelinha, sem desgrudar, vendo as coisas diminuindo de tamanho, as pessoas virando formiguinhas... eis então as primeiras nuvens passando, e ele sobre o imenso colchão branco banhado de sol. Pôs os óculos escuros, recostou-se na poltrona e começou a repassar os planos: chegaria numa terça de madrugada e teria até o amanhecer para se desvencilhar da alfândega. Tomaria um táxi até o endereço do amigo cicerone, cuja chave do apartamento lhe seria deixada com uma amiga que trabalhava na caixa de uma lanchonete, ao lado da entrada do prédio. Descansaria até o fim da tarde, e, quando o amigo chegasse do trabalho, decidiriam o que fazer na primeira noite. Nos dias seguintes, junto com o amigo (que providenciara uma licença no serviço), compras de roupas, agasalhos, tênis, etc, e o laptop que seria, enfim, o seu primeiro e ansiado PC (Taquinho às vezes usava o computador da agência de turismo e tinha algum traquejo na máquina). Na sexta, ônibus para Orlando e a Disneyworld. Na segunda, o amigo retornaria a NY e ele começaria o curso de inglês na Universidade da Flórida, onde ficaria hospedado. Ao fim do curso, ônibus para Washington, reencontraria com o amigo, iriam ver Madonna e, depois, trem para Nova York e a alvorada da sua vida!

Num determinado momento, quando sobrevoavam o imenso mar verde da Amazônia, foi anunciada uma inesperada escala em Manaus para checagem da aeronave. Os passageiros demonstraram temores, mas, para Taquinho, que não tinha nenhum medo de avião, o maior problema era o desacerto de seus planos que um atraso maior poderia causar. “Essas empresas brasileiras” – pensou atazanado – “bem que eu queria uma empresa americana; mas o preço do pacote subiria quase mil dólares!” De fato, não deu outra. Em Manaus, depois de interminável espera, foram avisados que a aeronave não poderia prosseguir. Outra aeronave seria alocada para o vôo e só estaria disponível no dia seguinte de manhã. “A empresa se encarregaria da hospedagem e alimentação dos passageiros até o novo embarque” – disse uma funcionária aos passageiros.

Porém, Taquinho, astuto, durante a espera reparou que um vôo da American Airlines decolaria de Manaus para Nova York ainda naquela noite, e deu uma sapeada no balcão da empresa, levando uma conversa com o seu pessoal. Lá ficou sabendo que ainda havia lugares e, se a empresa dele autorizasse, ele embarcaria. Taquinho tinha boa lábia e levou um lero com o gerente da empresa brasileira convencendo-o de que era melhor negócio embarcá-lo do que bancar a sua estadia em Manaus. O gerente topou, o negócio foi feito, foram providenciados os papéis, a bagagem foi trocada de avião, e Taquinho embarcou.

Foi um vôo perfeito que pousou no aeroporto John F. Kennedy, de Nova York, exatamente às 08h45 (hora local) do dia 11 de setembro de 2001.

Capítulo 2

Capítulo 2

Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque.

Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma névoa de spray mal cheiroso.

Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”, só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em levá-lo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A.

Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria.

Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela, onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois, passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho trazia na sacola.

Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois (Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados.

Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França), mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá.

Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho, pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas, sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!”

Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disse-lhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica! Bye and good luck!”

Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro, homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em lançamento.

A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo; quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas que tomou até chegar ali, exausto e bufando.

Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então, difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo, se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele. Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca, tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação, a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas.

Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação, acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou: GUANTÂNAMO.

Capítulo 3

Capítulo 3

Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida” ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor.

Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas.

Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale.

Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um.

Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores.

Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial.

Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião.

Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade.

Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.

A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis.

Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.

O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.

Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.

Capítulo 4

Capítulo 4

Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã, que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se.

Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só.

Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos.

O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.

Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção.

Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres.

Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”.

Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.

Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.

Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta.

Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.

Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”.

Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.

Capítulo 5

Capítulo 5

O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com “pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abri-lo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro.

De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.

Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério.

Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”.

Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.

Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.

Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo.

“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.

As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.

“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.

A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo.

No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”.

Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade.

Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.

Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.

Capítulo 6

Capítulo 6

A pobre senhora não sabia o que fazer. Não estava acostumada e nem gostava de tomar decisões importantes. Lembrou-se de que a última decisão importante que tomara em sua vida foi a de deixar Belo Horizonte com Taquinho para voltar a morar com o pai em Valadares. E demorou quase dois anos para tomá-la desde que pensou nela pela primeira vez. Quando o fez, o marido estava de viagem, e ela comunicou-lhe por telefone. Disse a ele que não estava se separando, mas voltando para a sua cidade, onde tinha trabalho e a companhia do pai. O marido retrucou que ficaria mais difícil encontrarem-se, porque naquela época não havia vôos de carreira para Valadares, e isto complicava as coisas para ele no emprego. Mesmo assim, ela fez as malas, pegou Taquinho e foi para a casa do pai.

Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento. Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho. Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em comum, para eles, não se tornara necessária mais.

Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu coração de mãe e, de certa forma, a consolava.

Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso; Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho, há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”, palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte.

Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo, informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio, quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José Eustáquio.

Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazê-la dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta:

- Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem?

Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o:

- É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são?

- Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se recupere.

Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza, esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia nele, linha por linha.

Capítulo 7

Capítulo 7

Um maço de 22 folhas de papel perfuradas e amarradas com barbante, encapado com cartolina parda como nos processos judiciais, foi retirado do temível envelope pela mãe do jovem missivista.

Na capa, em caneta hidrocor vermelha com a letra do autor, vinha o título do documento: “Declaração, feita de memória e próprio punho pelo brasileiro José Eustáquio Raghid Varela, do que lhe ocorreu no período de 11 de setembro de 2001 até a presente data”. A seguir, o mesmo título parecia a dona Lourdes vir repetido em inglês e em árabe por outra caligrafia que não a do filho. Mas ela arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca, estupefata, quando leu, em português, igualmente seguido pelos dois outros idiomas, o local e data do escrito: “Bagdá, 24 de dezembro de 2004.”

“Santos Deus!” – exclamou em voz alta, sem ser capaz de se conter por tamanha surpresa.

Para o leitor, que conheceu o resumo de parte do relato nos dois primeiros capítulos desta história, a surpresa não deve ter sido tão grande. Sabemos do vínculo macabro que há entre aquele pedaço usurpado à ilha de Cuba e a infeliz cidade referida naquela datação, inclusive por ela abrigar uma prisão tão terrivelmente célebre como Abu Ghraib.

Porém, para a pobre mãe... nem se diga! Ela se preparara da melhor maneira que lhe fora possível. Tomara um bom banho, café da manhã reforçado com frutas e fora à missa das seis rezar pela alma do filho e pedir forças a Deus para suportar o desafio. Sabia que naquela hora a missa não seria de padre Antonio e não encontraria conhecidos que lhe fizessem desconcentrar-se da missão que havia imposto a si mesma. Só ao retornar - sentada na mesma cadeira da mesa de jantar em que abrira os outros envelopes é que, munida de tesoura, uma caixa de lenços de papel que trouxera da drogaria e com os óculos bem limpos e ajustados -, abriu o envelope.

Das 22 folhas, 19 estavam completamente preenchidas nos dois lados pelo texto principal, feito em letra miúda e com um mínimo de espaço entre linhas, mas no capricho, com caneta esferográfica de cor verde (os anteriores eram com o mesmo tipo de caneta de cor azul). Eram numeradas por folha, na parte direita superior da página de frente de cada uma, sempre com os respectivos números colocados dentro de um pequeno círculo.

O texto começava pela identificação do declarante, a mais completa que lhe fora possível fazer de memória: “Eu, José Eustáquio Raghid Varela, brasileiro, solteiro, etc... declaro, a quem interessar possa, o seguinte:”. Seguia-se o texto corrido, parágrafo por parágrafo, assinalados por uma pequena entrada na primeira linha, sem mais cesuras nem divisões destacadas. O conteúdo, rigorosamente composto em ordem cronológica e, ao que parece, com supervisão ou assessoramento de quem possuía domínio de normas jurídicas, inclusive com a menção de datas e horas certas ou prováveis em alguns dos parágrafos, poderia ser dividido em três grandes partes fundamentais, como a seguir veremos. As três últimas folhas eram de anexos ao texto principal, sobre os quais saberemos mais à frente.

A primeira parte continha o relato detalhado desde a saída de Brasília até a chegada na prisão de Guantânamo, sobre o qual já sabemos o suficiente para seguirmos em nossa história. Ocupava quase quatro folhas inteiras (sete páginas e três quartos).

A segunda parte, a mais volumosa, ocupando quase oito folhas (15 páginas e tanto), continha o relato detalhado da estadia do desventurado autor naquele inferno sem poesia. Um inferno em que o maior castigo, segundo ele, era o de não poder morrer nem ficar louco. Avançada tecnologia médica, farmacêutica e hospitalar era aplicada aos prisioneiros para que as torturas obtivessem o máximo de sofrimento possível sem que a vítima ultrapassasse os dois limites. Se isto ocorresse seria, para os algozes, uma falha tão grave quanto a fuga do prisioneiro. Devemos saltar toda essa parte. Deixemos linhas como tais para os processos que haverão de correr nos tribunais existentes e futuros e que, com os auspícios de uma outra realidade mais favorável à vida humana nesta Terra, farão punir com Justiça esses criminosos desalmados e colocar os responsáveis diretos e indiretos por tamanhas atrocidades em seus devidos lugares (ou infernos).

A terceira e última parte era o relato de Taquinho (dona Lourdes voltou a lembrar-se dele pelo apelido, tão logo começou a leitura) a partir do momento em que acordou com o mesmo gosto ruim na boca e quase tão desorientado quando se descobriu numa lancha militar indo para Guantânamo. Desta outra vez, a sensação era a de estar na poltrona muito reclinada de uma aeronave, em pleno vôo, que o levava para longe do inferno no qual, calculara depois, perdera quase três anos de sua jovem existência. Esta parte contém o que poderia o autor relatar da história que vamos descrever a partir do próximo capítulo, pois, neste, ainda temos de dar espaço aos anexos e um tempo para dona Lourdes, que demorou mais de vinte horas seguidas para ler tudo o que ali havia para ser lido em nosso idioma. A caixa de lenços de papel lhe fora suficiente só para as três primeiras horas de leitura e, antes da metade da segunda parte, com certeza a mais difícil para ela, já se valera de todos os lenços de pano que possuía, os quais havia disposto ao seu lado, numa cestinha de costura, quando se acabaram os de papel.

Deixemos só a pobre senhora em seu pranto imerecido, com a nossa solidariedade e pesar, e continuemos, pois devemos também preparar-nos para a penosa travessia, ainda que nunca tão difícil para nós quanto o fora para ela.

No primeiro anexo havia uma luminosa reflexão ao mesmo tempo filosófica e confessional do próprio Taquinho, quase poética, a respeito de tudo o que se passara com ele e sobre a decisão que havia tomado para o futuro imediato. Nele, consumiu a página de frente e dois terços do verso da folha que lhe coube.

O segundo era um depoimento do preceptor de Taquinho na sua conversão, ou melhor, sua iniciação na religião muçulmana, de corte sunita. Apesar do batismo e a cultura cristã de origem, o novo discípulo do Islã confessara ao preceptor que jamais se iniciara ou praticara no credo cristão, exceto quando criança e por indução de sua mãe, considerando-se, mesmo, um completo ignorante de quase tudo a respeito. Vinha escrito em perfeito Português, quase castiço, com encômios sinceros ao discípulo, pois não disfarçavam a admiração do preceptor pelas virtudes que encontrara no espírito e na vida interior do iniciado. Assinava com o codinome Shakir (grato, agradecido) e codinominava seu discípulo de Faraj (cura, melhoria), significados estes que informou também entre parênteses ao mencioná-los pela primeira vez no corpo do texto. Conciso e preciso, o texto é de autoria de quem domina plenamente a linguagem escrita e ocupava, bem diagramado, quase toda a página de frente com letras boas, de calígrafo, e linhas bem espaçadas

O terceiro trazia os atestados de próprio punho de duas testemunhas que ouviram todo o texto lido pelo próprio declarante e traduzido, simultaneamente, para o árabe por seu preceptor, bem como o viram escrevendo o documento em diversas ocasiões. Um deles era escrito em árabe e o outro em bom Português-Brasileiro; ambos vertidos para o inglês. Por razões de segurança, as testemunhas não se identificavam, exceto por rubricas ilegíveis, mas se comprometiam a fazê-lo diante de tribunais e mediante compromisso de sigilo judicial. Os atestados, e respectivas versões para o inglês, vinham escritos em letras miúdas e apertadas entrelinhas, ocupando só a página de frente da folha.

Os anexos foram escritos em caneta esferográfica de cor verde, exceto o do que se codinominava Shakir, que era escrito também na cor verde, mas a caneta tinteiro, no pleno domínio de seu manuseio, o que se podia perceber pelo sofisticado traçado das letras, das serifas e do uso dos traços finos e grossos de requintado calígrafo.

Capítulo 8

Capítulo 8

Taquinho sentiu o impacto forte do pouso mal feito da aeronave, sem saber o que havia do lado de fora, nem se era noite ou dia, pois todas as janelas estavam fechadas e a penumbra de poucas luzes internas dominava o ambiente. Pouco depois da aterrissagem, mais luzes internas se acenderam e ele pôde ver outras poltronas como a dele à sua frente, algumas ocupadas. Percebeu-se vestido com uma só túnica de tecido vulgar que ia até seus pés sobre o corpo nu. Calçava umas sandálias velhas de couro cru, podia vê-las e senti-las. Passou-se algum tempo com a aeronave parada no solo quando, enfim, ele escutou vozes e a movimentação de pessoas. Um dos carcereiros do setor onde ficara em Guantânamo se aproximou e, rude como sempre fora com ele, tirou as algemas que lhe prendiam na poltrona e ordenou-lhe que o acompanhasse.

Para surpresa de Taquinho, não lhe foram recolocadas as algemas. Durante o tempo na prisão, aprendera inglês apenas o suficiente para saber que ordens lhe estavam sendo dadas e como cumpri-las. Praticamente não podia abrir a boca para falar enquanto esteve lá, pois sempre que tentara fazê-lo, apanhara como um cachorro. Seguindo o carcereiro, desceu pela porta traseira da aeronave e se viu dentro de um hangar com carros estacionados. Obrigaram-no a entrar e a se sentar no banco do meio de uma velha Kombi com dois homens no banco de trás e o motorista ao volante, todos em trajes civis. Nada de algemas.

A Kombi arrancou para fora do hangar e só então Taquinho viu o céu de um amanhecer um pouco nublado sobre a paisagem das adjacências de um aeroporto. Por cerca de meia hora, o veículo percorreu ruas e estradas de terra, quase desabitadas, de uma região arenosa e desértica, até que, em determinado ponto, estacionou. Os dois homens que iam atrás abriram a porta lateral da Kombi, e empurraram-no para fora. E foram embora.

“Enfim, estou autorizado a morrer”, pensou o jovem ao se ver só naquela paisagem desolada. A certa distância, longe da estrada, viu uma construção com muitos urubus pousados no telhado. Um cenário que, apesar do fundo desértico, lembrou-lhe o do matadouro na sua cidade de Governador Valadares. Constatou que de fato aquilo era um matadouro e que fora desovado num lixão de grande cidade. Apesar de estar quase desmaiando de fome, de sede, das dores em todo o seu corpo, em contraponto com uma sensação anestésica que lhe dificultava o tato e a percepção da textura de sua própria pele, além de exausto e quase completamente exaurido do instinto de sobrevivência, ele decidiu andar para longe dali até onde pudesse resistir para não deixar seu corpo a disposição dos abutres. Andou, não sabe quanto e por quanto tempo, até que avistou ao longe um perfil urbano difuso na quase opacidade das nuvens de poeira que o vento alçava sob um sol escaldante que já ia alto.

Reuniu todo o resto de forças que porventura lhe restavam e praticamente se arrastou pela estrada naquela direção. Começaram a surgir os primeiros transeuntes, em geral pessoas maltrapilhas, algumas também vestindo túnicas como a dele, umas poucas usando turbantes. Numa encruzilhada, ele pensou tomar a via mais populosa a sua esquerda, mas viu nela alguns cachorros soltos. Tinha tomado horror a cachorros, os torturadores os usaram para aterrorizá-lo, por isso mudou o rumo e foi pela outra via. Ninguém dava a mínima para ele em seu estado lamentável, empoeirado e suarento, claudicante, quase se arrastando. Por duas vezes, tombou ao solo e em ambas pensou em desistir. Porém, seguiu, entrou na cidade, num bairro periférico paupérrimo, com muita gente movimentando-se para todos os lados, carros e ônibus velhos, placas e sinalizações em caracteres estranhos e para ele absolutamente indecifráveis. Num certo momento, ele viu a abóbada de um edifício alto e se dirigiu na direção dela. Ao se ver de frente para a majestosa fachada do edifício chegou a pensar que estava delirando e andou até as escadarias que levavam à sua porta principal. Nos primeiros degraus deixou-se cair e pensou: “Aqui mesmo fico, adeus mundo sórdido!”

Deitado ali em desajeitada posição, ele nem ligava ao que estava à sua volta e olhava para o céu cinzento azulado, tentando relaxar-se para falecer com alguma paz interior em sua inusitada solidão. Foi então que seus ouvidos captaram os sons do diálogo de um casal que passava por ali. Falavam a sua língua e, à medida que se aproximavam, os entendia com perfeição. Estavam cada vez mais perto dele, e Taquinho, a ponto de desmaiar e vendo tudo escurecer, nunca soube explicar para si mesmo por que, tão desejoso como estava de desaparecer da face do planeta, reuniu suas últimas energias, em penosíssimo esforço, para gritar com o que lhe restava de força nos pulmões: “Ajudem-me, por favor!”

Quando abriu os olhos, se viu deitado num leito de enfermaria de um movimentado hospital. A seu lado, sentado numa cadeira, um homem lhe dirigiu a palavra e ele não só recordou a voz masculina que ouvira antes de desmaiar como entendeu perfeitamente o que lhe estava sendo dito em sua própria língua pátria, coisa que há muito tempo, muito mesmo, quase uma eternidade para ele, não lhe ocorria.

- Quem é você? – perguntou ele a Taquinho – Como chegou até aqui? Você fala português?

Taquinho custou a estabelecer um diálogo inteligível com ele. Pensou que era um médico e se apavorou, pois tinha tomado pavor de médicos. Tinha dificuldade de controlar a voz, às vezes não lograva emiti-la, outras falava muito alto por nervosismo e excitação. Mas o homem foi gentil, acalmou-o e, pela primeira vez desde que deixara o Brasil, Taquinho sentiu um ser humano amistoso diante de si.

Aos poucos foram conseguindo comunicação. Taquinho ficou sabendo que estava num hospital de Amã, capital da Jordânia. Tinha sido examinado detidamente e recebera vários medicamentos, soros e vitaminas. Disse o homem que seu corpo trazia muitos sinais de ter sido torturado barbaramente e o corpo médico do hospital estava aguardando que se reanimasse para interrogá-lo, antes de qualquer outra providência.

Taquinho então falou em Guantânamo. Ao ouvir essa palavra, o homem pediu que não falasse mais nada e fingisse que permanecia desacordado. Iria buscar-lhe roupas para tirá-lo imediatamente dali. Praticamente ordenou-lhe que o aguardasse retornar e que não falasse com ninguém. Ia saindo quando Taquinho perguntou-lhe:

- Que dia do ano é hoje?

- 15 de agosto.

- De que ano?

- 2004!

Taquinho chorou.

Capítulo 9

Capítulo 9

No seu texto, Taquinho diz não poder identificar nem dar detalhes do amigo que o salvou de falecer na porta de uma mesquita em Amã para não comprometê-lo em suas atividades. Nós podemos saber que era um membro importante da resistência iraquiana e ex-oficial da Inteligência de Sadham Husseim, que teve uma longa estadia no Brasil na época em que os dois países tinham boas e muitas relações comerciais. Para facilitar a narração do papel dele em seu relato, Taquinho deu-lhe o nome fictício de Fadil, o qual, segundo aprendera com o seu preceptor, significa “generoso”. Valemo-nos do mesmo nome para batizar esta personagem da nossa história.

Quando encontrou Taquinho, Fadil ciceroneava uma velha amiga brasileira, que passava por Amã em missão de trabalho e estudos sobre mesquitas no Oriente Médio. Os dois ouviram-no pedir ajuda em língua portuguesa e decidiram levá-lo ao hospital. Mas Fadil ficou curioso e, como estava hospedado perto do hospital, decidiu acompanhar o caso. Tendo percebido a situação de Taquinho pelas cicatrizes que os grilhões lhe deixaram nos pulsos e nas canelas – o que abria a possibilidade de que fosse membro da resistência iraquiana -, para evitar polícia e procedimentos legais destinados a não documentados, suspeitos e indigentes, declarou-se amigo da família do paciente e forneceu ao hospital dados falsos que identificavam Taquinho como cidadão iraquiano. Os médicos, ao examinarem-no, puderam diagnosticar o seu sofrido passado e queriam informar as autoridades. Fadil convenceu-os de esperar o paciente voltar a si antes de fazê-lo, e eles concordaram. Por sorte, Fadil estava ao seu lado, com um notebook, tentando identificá-lo em fotos de membros da resistência desaparecidos, quando Taquinho despertou depois de quase dois dias em que ficara desacordado.

Naquele momento, a movimentação no hospital era atípica e nervosa, por causa de um acidente de ônibus nas proximidades, de que muitos feridos foram levados para lá. Fadil aproveitou-a para escapar com Taquinho. Comprou ali por perto roupas ocidentais, um par de tênis e um turbante, e os levou numa sacola até o leito dele. Ajudado por Fadil, Taquinho saiu do hospital em meio ao tumulto do acidente, sem que ninguém os abordasse. Tomaram um táxi, passaram no hotel para Fadil apanhar a sua bagagem e foram até a rodoviária, onde tomaram um ônibus para Bagdá. Taquinho foi instruído para fingir-se de surdo-mudo na parada de identificação que, decerto, fariam na fronteira entre os dois países. Fadil apresentaria os documentos de ambos, diria que Taquinho era deficiente físico e que respondia por ele. O ônibus estava quase vazio e eles sentaram-se distante dos demais passageiros para conversarem sem ser ouvidos. Fadil era experiente em tais situações, além de muito cuidadoso com os detalhes.

- Em Bagdá – disse-lhe Fadil – você estará mais seguro do que em Amã, que é uma cidade totalmente controlada pela CIA. De lá, será mais fácil para nós repatriá-lo com segurança.

Taquinho, porém, colocou objeções a este último projeto. Não queria retornar, sabia-se mutilado física e espiritualmente, para sempre, e já tinha tomado a decisão irrevogável de deixar-se morrer, ou, se possível, matar-se.

O amigo tentou demovê-lo da idéia e, para convencê-lo, decidiu revelar ao jovem o que ouvira dos médicos que o examinaram. Disse a ele que lhe restava pouco tempo de vida, no máximo um ano, e isto se se mantivesse sob cuidados médicos e hospitalares de boa qualidade. Por que Taquinho não aproveitava esse pouco tempo e não o compartilhava com seus entes queridos?

Taquinho agradeceu o apoio, mas desanimou-o contra-argumentando que só levaria mais sofrimento e tristeza a tais pessoas. Além disso, sentia-se profundamente humilhado e absolutamente incapaz de encarar qualquer uma delas. Contou o que lhe passou desde que saíra do Brasil e, muitas vezes aos prantos, as torturas de que fora vítima inocente. No fim, pediu encarecidamente ao novo amigo que não lhe poupasse nada do que soubera no hospital, queria saber de tudo, nos detalhes.

Ao ouvir atentamente todo o relato, Fadil surpreendeu-se pelo fato de Taquinho nada conhecer dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nem da guerra dos EUA contra o Iraque e o Afeganistão (Taquinho mal sabia da existência de tal país), fatos estes sobre os quais dissertou longamente como um auto-atentado pré-concebido pelo governo norte-americano para que desatassem as duas guerras e outras mais. Especulou que a prisão de Taquinho fora uma das primeiras conseqüências daqueles fatos e que possivelmente ocorrera por engano. Uma vez que ele se tornara um perigo para os propósitos dos que o prenderam, usaram-no como cobaia de experimentos médicos avançados e de tortura científica. Disse-lhe que não era o primeiro caso que lhe chegara ao conhecimento, mas que estava ao lado do primeiro sobrevivente, de que tinha notícia, de tamanha barbárie.

Atendendo ao pedido de Taquinho, Fadil fez-lhe um resumo do que fora informado no hospital. Seus aparelhos digestivo e respiratório estavam indo irreversivelmente ao colapso. Um dos pulmões estava praticamente inutilizado e o outro, muito lesado. O rim esquerdo lhe fora extraído (possivelmente para transplante) e o direito não apresentava bons sintomas. Assim também o fígado, o estômago e os intestinos grosso e delgado. Exames de sangue, de urina e outros revelaram que ele fora submetido, por longos e vários períodos, a altas doses de drogas de toda espécie, algumas capazes de lesar em definitivo certas funções do organismo. Quando foi encontrado, estava à beira do escorbuto, doença fatal que é causada por pelo menos três meses de falta total de nutrição de vitamina C. Fadil especulou que tal desnutrição lhe parecia proposital, talvez uma tática de Guantânamo; ao liberar suas vítimas preparava-as para a morte rápida e longe de suas responsabilidades. Via também como outra tática daquela prisão de alta tecnologia o fato de apesar de violentarem um corpo por todas as maneiras possíveis, o esqueleto permanecer não atingido e intacto. Nenhuma lesão grave, trinca ou fratura fora encontrada no de Taquinho. Assim, uma futura exumação de cadáveres dos torturados não apresentaria provas contra os torturadores.

Já tinham passado a fronteira, sem problemas, quando Taquinho perguntou ao amigo se a resistência iraquiana se valia de ataques suicidas contra os inimigos. Em caso positivo, ele gostaria de se apresentar como voluntário.

Fadil calou-se por um tempo, antes de responder. - Tal honra, se é que eu tenha entendido onde realmente você quer chegar - disse ao jovem - é exclusiva de um verdadeiro Mujahid. Muito diferente do que divulgam no Ocidente, o Jihad não é Guerra Santa, longe disso. Não há tradução possível numa só palavra ou expressão de línguas ocidentais para o seu significado completo. Trata-se de um direito legítimo de defesa que os muçulmanos se outorgam em dois campos distintos: internamente, em si mesmos, contra a perversão da própria alma, e externamente, em defesa da pessoa e da nação islâmicas. Há regras precisas para o segundo caso. Só pode ser usado in extremis e não pode vitimar crianças, velhos e mulheres inocentes. Tem de ser a conseqüência do amor ao Islã, e não do ódio ao inimigo. Não se trata de um instrumento legal de ataque, como pensam os ocidentais, mas de uma cultura de defesa das nossas tradições. Para a religião islâmica, ao se dar a vida pelo Islã, não há o suicídio, mas, sim, a purificação pelo martírio. Usado de acordo com as regras, haverá para o mártir a absolvição de todos os seus pecados. Ele encaminha a sua alma diretamente a Alá.

- E como eu faço para me tornar um Mujahid? – perguntou Taquinho.

- Não sou eu quem pode lhe dizer – respondeu Fadil.

Capítulo 10

Capítulo 10

Taquinho abriu os olhos depois da meia hora de cochilo a que se acostumou aos fins de tarde, logo depois de administrados os seus medicamentos de rotina. Deitado na confortável cama do quarto arejado e bem iluminado em que se hospedava, ele às vezes se beliscava para certificar-se de que não estava sonhando. Desta vez, não precisou, estava bem acordado... e feliz, chegava a sorrir consigo mesmo. Mas não era a felicidade do tipo daquela em que o vimos ao se aconchegar na poltrona do avião, no início da nossa história. Não, de forma alguma! Era um outro tipo de felicidade, tão infinitamente distante daquela, que, em suas meditações, Taquinho a imaginava como as do tipo que devem iluminar os grandes descobridores e inventores diante dos grandes achados históricos; no caso dele, a descoberta maravilhosa da sua própria consciência, ou do seu próprio ser.

Zahirah, a luminosa, entrou trazendo o lanche da sua dieta numa bandeja, alegre como sempre. Era linda a filha de Shakir, além de ser uma bailarina magnífica. Taquinho via nela traços de sua mãe; imaginava-a, na mesma idade, com a graça, a cor clara da pele, o arredondado do rosto e os olhos castanhos amendoados muito semelhantes aos de Zahirah. Trocaram sorrisos, e ela se foi, silenciosa e brejeira, fechando a porta com cuidado. Era um anjo! Taquinho e ela cultivavam um amor fraternal, pois outro ele não podia mais - a tortura o despojara das funções sexuais; mas isto agora não lhe importava nem um pouco. Estava a dois dias da cerimônia da Chahada, que o converteria em muçulmano e, depois, se os clérigos lhe concedessem a honra, em Mujahid. Taquinho considerava esses últimos quase quatro meses como equivalentes a toda uma vida que valesse a pena ter sido vivida. Daí aqueles conceitos que expressou em seus escritos, a respeito dos valores qualitativos e quantitativos do tempo.

De memória, ia repassando os acontecimentos desde que Fadil o deixou no esconderijo em Bagdá, no porão de uma casa onde passou dois dias com uma garrafa d’água e um pão para se alimentar. O porão pareceu-lhe uma mansão perto das celas de Guantânamo, e a comida um manjar, embora não pudesse desfrutar-lhe o sabor por causa dos problemas no paladar e no aparelho digestivo. Molhava o pão na água para comê-lo sem se engasgar.

Fadil retornou com dois homens, cada um carregando, com grande esforço, duas belas poltronas estofadas (Taquinho nunca vira poltronas como aquelas) e disse-lhe que um sufi viria avaliá-lo quanto à possibilidade da conversão. Explicou-lhe que o sufi tinha sido cônsul em Portugal por muito tempo, falava e escrevia bem em português, e o sobrenome Raghid o convencera a vir visitá-lo (“É a primeira vez que o Raghid me valeu para algo”, pensara, então, Taquinho). Disse-lhe que a audiência poderia ser demorada, em geral levava horas e até dias, e o aconselhou a ser sincero, não mentir, não distorcer fatos nem tentar ludibriar o sufi. Orientou-o para que o aguardasse de pé, respeitoso, só fizesse o que ele lhe ordenasse, e que não falasse uma palavra sem que lhe fosse solicitada. Fadil saiu com os homens e logo os três retornaram acompanhando Shakir, que vinha elegantemente trajado, com um terno muito bem cortado (“Digno do meu avô”, recordou Taquinho) e um turbante alvo no qual vinha preso, ao centro, um grande rubi que combinava com a cor da gravata. Shakir olhou bem o garoto dos pés à cabeça, trocou algumas palavras em árabe com os três homens, e se foi. Taquinho baixou a cabeça, derrotado, mas, para sua surpresa, Fadil o cumprimentou, parabenizando-o, pois ele fora brilhantemente aprovado. Disse que receberam ordens para levá-lo à residência do sufi, o qual assumiria, ele mesmo, a tarefa de iniciá-lo. Além do mais, Taquinho seria recebido como hóspede do sufi até a sua conversão. Ambas as decisões do sufi eram consideradas honras extremas.

No mesmo dia ele foi levado até o belo, grande e rico palacete do sufi, com vários empregados e serviçais, e foi instalado naquele apartamento (quarto com banho privativo) cuja grande janela dava para um jardim interno belíssimo que era cuidado por dois jardineiros supervisionados pelo bom gosto de Zahirah. Lá o esperavam dois médicos e um enfermeiro que, acompanhados por Fadil para facilitar a comunicação e a confiança do paciente, durante uma semana o examinaram, o medicaram e converteram o quarto num pequeno hospital, cheio de produtos de uma outra farmácia que ele não conhecia, a islâmica, além de alguns produtos, equipamentos e acessórios hospitalares convencionais. Tais expedientes trouxeram um enorme conforto para ele, e o livraram dos desmaios e falta de ar de que vinha sendo vítima desde o segundo ano em Guantânamo. Os médicos prescreveram-lhe dieta à base de alimentos líquidos, cremosos e gelatinosos e uma série de poções, remédios e vitaminas que deveria ingerir rotineiramente. Depois, veio-lhe um enxoval de roupas ocidentais de boa qualidade que serviam nele como se feitas sob medida, e quase encheram o armário amplo que equipava o quarto. Vieram também os livros, todos em português e que Fadil ia passando para ele com orientações sobre cada um. O mais importante naquele momento era um manual de iniciação no islamismo para os povos de língua portuguesa, escrito pelo próprio sufi, que foi o primeiro a ser lido e veio a ser o de cabeceira do iniciante.

Começou a ler muito; pela primeira vez na vida deixou-se levar pela leitura de livros e saboreá-los com atenção interessada. Tinha facilidade; desde cedo, quase criança, percebera isso, mas, em Valadares, procurava escondê-lo dos colegas de escola e dos amigos, pois todos detestavam ler livros, e ele fingia que detestava também. Além de ler com rapidez – em poucas horas podia ler volumes que tomariam dias ou semanas de leitores normais -, tinha o dom de apreender tudo logo na primeira leitura e ainda ser capaz de citar trechos e até parágrafos inteiros, de memória. Antes, ele procurava fugir dos livros para manter longe da consciência pensamentos que julgava desagradáveis ou pertubadores; envergonhava-se de ter facilidade para ler e escrever como se tais virtudes fossem defeitos execráveis. Valia-se de obnubiladores da consciência que buscava em banalidades fáceis, a fim de se parecer igual aos amigos e colegas – coisa em que nem sempre era bem sucedido. Agora, via-se dedicando aos livros de oito a dez horas por dia, às vezes até mais, devorando-os, como se a tentar recuperar o tempo perdido. Sua saúde e os traumas psíquicos não lhe permitiam dormir bem nem ter sonos longos, e ele cobria insônias, mal-estares, dores e febres com a leitura de livros que, além de lhe proporcionarem as maravilhas do conhecimento e abrirem as janelas da sua consciência, traziam-lhe também alívio físico, distraindo-o desses problemas.

No primeiro domingo do mês de setembro, Fadil chegou cedo acompanhado de um barbeiro que lhe fez o cabelo e a barba com extremo capricho, deixando bem desenhados o cavanhaque e o bigode, ao estilo árabe. Ficou combinado que o barbeiro viria aos domingos pela manhã. Depois, o amigo pediu-lhe que se vestisse com a melhor roupa, porque teriam o primeiro encontro com o sufi, após o qual Fadil se despediria, pois tinha de voltar a Amã. Taquinho estava outro, quase renascido.

Fadil e ele foram recebidos na esplêndida biblioteca do sufi, que os acomodou bem à vontade em grandes almofadões dispostos sobre um tapete persa magnífico, ao lado de uma grande vidraça que dava também para o jardim interno, mas em sua parte mais rica em paisagismo. Estava acompanhado de Zahirah, e foi quando Taquinho conheceu vez o rosto dela, pois antes já a vira cuidando do jardim, porém, usando véu e roupas discretas. Ali, ela estava lindamente vestida e sem o véu, olhando sorridente para ele, e cumprimentando-o em português de Portugal.

Estabeleceu-se nesta primeira e rápida reunião que Taquinho começaria o processo de sua iniciação no dia seguinte. Todos os dias ele deveria acordar antes do nascer do sol, ir para a biblioteca e fazer a leitura de uma surata do Alcorão escolhida pelo mestre. Depois fariam o desjejum para em seguida começarem as aulas, os exercícios espirituais e a iniciação nos chamados “cinco pilares do Islã”. A dificuldade que Taquinho teve ali com o português de Portugal, que era falado pelo sufi e a filha, foi superada por ele em menos de uma semana.

Taquinho demonstrou disciplina, humildade e vivacidade desde este primeiro encontro; encantou o mestre e a filha. No final daquela mesma semana, o sufi deu ao discípulo uma folha de papel e uma caneta esferográfica pedindo para que escrevesse reflexões sobre a sua vida interior, usando apenas um lado da folha. Advertiu-o de que o papel em Bagdá era difícil e racionado e de que não o desperdiçasse. Disse-lhe para ocupar uma das mesas perto da estante mais ampla e, quando acabasse, deixasse ali mesmo o escrito. Em seguida, saiu, deixando-o só na biblioteca.

Capítulo 11

Capítulo 11


“Fui um idólatra!

“Desprezei os valores do saber, da fé e da humildade e reverenciei ídolos de matéria plástica e elétrons coloridos, vazios de essência e substância. Deixei-me ser escravizado e fui presa fácil de armadilhas criadas para alimentar a ganância insaciável de falsos deuses. Porém, e não poderia ser de outra forma, meu espírito vivia em permanente estado de insatisfação, o que me impelia mais e mais ao servilismo e à vileza.

“Em busca de algo que eu não sabia o que era, viajei em vão por continentes e mares. No início, por minha própria e equivocada vontade, e, depois, preso e indefeso nas garras de algozes poderosos. Lentamente, eles me sugarem todas as esperanças e forças vitais, e, enfim, me descartaram. Fiquei só, física e espiritualmente, no meio do deserto.

“Somente agora, depois da primeira experiência pessoal com a benevolência dos justos, que dali me retiraram e trouxeram-me a esta nobre casa, é que tomei consciência: o que eu ansiosamente procurava alhures sempre esteve bem aqui, comigo, como um facho de luz no interior do meu próprio ser e que a cegueira da alienação não me permitia enxergar.

“Que as poucas linhas restantes daquelas que porventura me foram dedicadas no Grande Livro descrevam o meu encontro com o esplendor dessa luz. Por mais insignificante eu a tenha tornado com o peso de meus pecados, por resgatá-la tudo farei e, tendo êxito, me sentirei recompensado na eternidade.

“É o que, com fé e humildade, peço a Deus, se acaso posso ser digno da Sua misericórdia e do Seu perdão para que me julgue merecedor de tamanha glória.

“Raghid”

Shakir era um místico e um sábio respeitado em todo o mundo islâmico. Gozava de grande prestígio também em altas rodas ocidentais. Seu verdadeiro nome é Hamid al-Basri (mas nós continuaremos a chamá-lo pelo pseudônimo que deu a si mesmo como preceptor de Faraj-Taquinho), cuja ascendência, sempre por linha paterna, alguns experts em genealogia afirmam que vai aos primórdios do sufismo e da cultura islâmica depois da Hégira, lá pelos séculos VII e VIII d.C. (a Hégira corresponde ao ano de 622 da era cristã). Pertencente a uma dinastia de místicos de longa tradição (a percepção espiritual na religião islâmica é uma graça de Deus e não uma faculdade que possa ser adquirida pela vontade humana), diplomata de formação e erudito, é também doutor autodidata em Filosofia e Matemática, com reconhecimento honoris causa em afamadas universidades islâmicas e ocidentais, e autor de várias obras publicadas e muito citadas em todos esses ramos do conhecimento.

Estava organizando o consulado do Iraque em Coimbra, Portugal, país onde residia com a filha havia quase dez anos, não só como diplomata, mas, também, como pesquisador da história e do pensamento islâmicos no período de ocupação da Península Ibérica. Ao final do ano 2000, com a eleição fraudulenta de George W. Bush, entendeu que a segunda invasão ao seu país se tornara uma ameaça real e decidiu por retornar a Bagdá. Ali, assumiu seu posto na alta cúpula da resistência, organizando-a e preparando-a para invasão, depois da qual passou a atuar em duas frentes distintas.

Por seu completo domínio da língua inglesa, atuava política e diplomaticamente perante os invasores, buscando a atenuação das catástrofes que causavam em seu país, ao mesmo tempo em que comandava pessoalmente a luta armada, como membro do alto comando da guerrilha de resistência. Fazia isto com relativa facilidade, uma vez que os oficiais e políticos norte-americanos envolvidos no front não dominavam o árabe, e menos ainda a cultura e os costumes islâmicos. Tinham de se valer de intérpretes, os quais eram, quase todos, membros da resistência infiltrados, quando não era o próprio Shakir a exercer o papel. Os poucos invasores que tinham algum domínio do árabe não tinham a menor percepção das sutilezas de linguagem, cultura e hábitos muçulmanos, e eis que era facílimo confundi-los, driblá-los e enganá-los. Muitas vezes, Shakir despachava com membros da resistência bem diante deles, que pensavam estar tratando com políticos, chefes de tribos ou de comunidades locais. E os pouquíssimos norte-americanos ou seus aliados europeus que alcançavam um entendimento mais sofisticado sobre onde estavam se metendo, acabavam por aliarem-se à resistência, haja vista os descalabros que seus compatriotas cometiam contra algo que tanto admiravam. Não raro, recebiam informações privilegiadas de dentro do próprio Pentágono, especialmente depois da destruição e saqueio dos preciosos Museu e Biblioteca de Bagdá.

A reflexão de Raghid surpreendeu-o, ainda que desde a primeira vez que o viu percebera a força espiritual que havia latente naquele jovem torturado. O conteúdo sensível, a beleza da caligrafia, a composição sem remendos, rasuras nem correções, posta com limpeza e senso de proporção na folha de papel, sem que fosse necessário rascunhá-la, eram virtudes de redação pouco comuns atualmente, mesmo nos países islâmicos. O jovem iniciando demonstrava ter talento, apesar do estilo tipicamente ocidental e um tanto rebuscado, com traços fortes e originais, mesmo quando afetados de inspirações orientais, e, às vezes, excessivamente vigorosos para o gosto árabe.

Lembrava algo do que Shakir observara no chamado barroco brasileiro em relação à arquitetura e à pintura, sacras e profanas, quando visitou a cidade de Diamantina, no interior do Brasil. Uma postura criativa de altivez desinteressada e irreverente, o fazer com alegria e liberdade, muitas vezes à beira do deboche, características que o encantaram na produção artística brasileira em geral. Postura esta que perturbava e até irritava a carrancuda e interesseira Europa, em particular os anglo-saxões. Entre os latinos, desde os portugueses e espanhóis até os franceses e italianos, Shakir desconfiava que havia uma ponta de inveja pela liberdade criadora dos latino-americanos.

O escrito do jovem não deixava margem de dúvidas sobre sua disposição em ir direto aos objetivos que se propôs, mesmo que tenha se valido de sutilezas para dizê-lo. Pelo informe dos médicos, quanto mais próximo no tempo se desse a autorização para que agisse, mais possibilidades de êxito haveria, pois, apesar de apresentar recuperação inequívoca em certos sintomas graves e de demonstrar inesperada vitalidade, a tendência do paciente era a de um gradual enfraquecimento em direção à invalidez e ao falecimento, sem descarte de um possível colapso súbito de um ou outro de seus órgãos vitais mais atingidos.

Mas Shakir não abria mão da ética islâmica e dos rigorosos preceitos religiosos que envolviam aquela decisão, e acreditava que precisaria de uns oito ou nove meses para assegurar-se de que não os estaria infringindo. Ao ler o texto, reconsiderou, convencido de que o garoto se colocaria hábil para se postular um Mujahid em tempo bem menor. Era notável o progresso demonstrado em pouco mais de uma semana de acesso à literatura básica e à paz interior necessárias para que penetrasse no processo de autoconhecimento. Assim, mandou chamar Fadil e o instruiu para que comunicasse ao comando que tal expectativa fora alterada para dezembro próximo ou janeiro do ano seguinte.

E, no dia posterior ao da redação do texto, depois do desjejum, sentou-se com o discípulo na mesma mesa em que lhe deixara o escrito, e disse-lhe:

- Vejo que você tem talento de escritor e creio que não devo ter sido o primeiro a identificá-lo. Isto o torna um caso mais raro ainda do que inicialmente imaginávamos. Você é talvez o único sobrevivente de tão difícil passagem, que, além do mais, é capaz de relatá-la por escrito de forma convincente e precisa. Sei que é difícil o pedido que vou lhe fazer e deixo a você decidir se o atende ou não sem que tal decisão se reflita no nosso relacionamento. Muito seria útil à Humanidade um relato seu de tudo o que se passou com você e digo-lhe que tribunais existentes ou em formação em alguns países ocidentais poderiam se valer dele para atuarem com eficácia, a fim de por um termo nessas atrocidades. Você o faria?

- Posso tentar - respondeu prontamente Taquinho - mas vou precisar de papel, talvez, muitas folhas, porque haverá de ser longo e detalhado um relato que satisfaça tais propósitos, não? E, se for possível, gostaria de fazê-lo com certa privacidade, pois creio que assim vou ter mais chances de chegar a bom termo.

Naquele mesmo dia, o quarto de Taquinho ganhou uma escrivaninha, canetas e materiais para escrever e um pacote com 500 folhas brancas de papel ofício.

Capítulo 12

Capítulo 12

Voltamos àquele momento em que encontramos Taquinho deitado em seu leito, rememorando os fatos que lhe passaram depois de Guantânamo.

Relembrava agora o dia 10 de setembro, dia em que comemorou 26 anos, quando, logo após o desjejum, recebeu de Zahirah uma linda túnica bordada, de corte apropriado a iniciandos, e um belo turbante, ambos feitos por suas delicadas mãos. O broche a ser colocado no turbante foi prometido pelo sufi para a cerimônia da Chahada.

Era uma sexta-feira e, à noite, o sufi homenageou o aniversariante com uma reunião íntima, na biblioteca. Vieram Fadil e a esposa, e dois membros da cúpula da resistência que Shakir convocara para a assessoria jurídica da redação do memorial de seu discípulo. Serviram comes e bebes, inclusive os especiais para Taquinho, que estreava a túnica e o turbante, ainda um pouco desajeitado no uso de ambos. Zahirah e Bahija, esposa de Fadil, prepararam o narguilé de seis bocas e dançaram para eles. Ao fumar pela primeira vez o haxixe, orientado pela angelical Zahirah, e, sob o efeito mágico e delicioso das baforadas, vê-las dançando ao som lindo do bouzouk (um tipo de alaúde) tocado por Fadil, Taquinho se sentiu fisicamente transportado para o sortilégio dos sonhos mais belos e felizes que a vida possa conceder a um mortal.

A partir de então, todas as noites das sextas-feiras, logo após a oração de depois do pôr-do-sol, Zahirah preparava para ele um narguilé exclusivo, em seu quarto, e ambos brincavam de “Mil e uma noites”. Ela fazia a Sherazade e ele o sultão. Sempre vestido com a túnica e o turbante e sob o efeito inebriante do haxixe, ele ouvia a leitura de uma das histórias, com sotaque português, na voz aveludada de sua Sherazade. No final da leitura, ambos repetiam o mesmo diálogo que finaliza todas as histórias daquele livro mágico. Em seguida, faziam a última oração do dia e se despediam com beijos fraternais.

Nos sábados ou domingos, os dois usavam essas mesmas horas para ver os jornais da televisão ou para navegar na internet no boudoir (sala de costura) dela. Ela traduzia para ele as notícias da TV e depois conversavam muito. Ambos desprezavam a televisão, concordavam que era sempre a mesma porcaria em qualquer país e que era feita para gente burra e mal educada. Além do mais, as notícias são dadas de forma falaciosa, como se para cooptar o espectador e desinformá-lo. Bastava-lhes conferi-las na internet em determinados sites sérios e bem escritos para conhecer a informação correta. Por sua vez, Taquinho aproveitava a internet, nessas ocasiões, para ter alguma informação atualizada do Brasil, mas não registrou e-mail, correspondeu-se com alguém ou interagiu com sites ou blogs. Não porque tivesse dificuldades em operar na nova linguagem, mas porque achava que isto tomava muito do tempo precioso dele e o afastava de seus objetivos. Preferia usar o seu tempo escasso, nesses dias, para conversar com Zahirah.

Zahirah contou-lhe que era a única filha do sufi, e a mais nova (completara 21 anos em abril) dos nove irmãos, cada um com uma diferente esposa do pai. Um deles é Fadil, o mais velho, e todos atuavam na resistência. Dois haviam perdido a vida e outro estava desaparecido desde os bombardeios de Fallujah, onde era a sua base. A mãe dela morava na Arábia Saudita, em Medina; o sufi tinha providenciado a mudança de suas esposas para lá, desde o início da invasão. Queria que Zahirah fosse também, mas ela se recusou e não abriu mão de ficar perto do pai. Não tinha medo, os invasores respeitavam os sufis e sabiam o quanto lhes custava agredi-los. Evitavam bombardeios em locais habitados por religiosos célebres, eis porque as bombas sempre caíam longe dali. Mesmo assim, os jardins daquela casa eram famosos por serem povoados de belos pássaros cantores que desapareceram de Bagdá com o advento dos bombardeios.

Bagdá tornara-se uma cidade sem pássaros, e o quanto isto entristecia seus habitantes e o olhar de Zahirah! Eram refinamentos assim, em certos detalhes que em outras plagas sequer eram percebidos, que faziam Taquinho, a cada momento em que ia conhecendo mais, um entusiasmado admirador da arte, da religião, da cultura e do povo que o hospedava em meio à barbárie de que era vítima.

O cristianismo a que ele estava habituado no Brasil – meditava –, era de pura hipocrisia. Parecia-lhe que em todo o Ocidente pregava-se uma coisa e praticava-se outra, totalmente oposta. Guantânamo e o 11 de Setembro, suas causas e conseqüências, eram demonstrações contundentes. Sua mãe era exceção, na sua opinião. A reforçavam Zahirah e o sufi ao comentarem sobre os cristãos daquela região, dos quais dona Lourdes era descendente. Tanto muçulmanos como cristãos e demais crentes nos países do Oriente, dizia o sufi, são admirados pela fidelidade aos cânones de seus respectivos credos e não ao contrário, como ocorre no Ocidente. E entre todas as religiões, ensinava-lhe o mestre, é a islâmica a mais tolerante e a menos sectária na relação com as demais.

Mas nem tudo foram flores para Taquinho nesse período. Nos dois primeiros meses, passou por momentos de profunda depressão e desânimo, com crises de choro pelas más lembranças e por sentir-se culpado de ter se tornado motivo de sofrimento para os seus, em particular, a sua mãe. Curou-o Shakir, ao perceber que o jovem estava com “saudades” da sua terra e de si mesmo, e deu a ele um ensaio que escrevera na década de 1950 – quando conheceu o Brasil e aquela palavra –, cujo tema era o pensamento filosófico nativo em nosso país. O discípulo não só assimilou o remédio como passou a seguir a trilha nele assinalada. Começou a entremear os estudos filosóficos e religiosos com os textos da brasilidade e, com o concurso da boa brasiliana que o sufi mantinha em sua biblioteca, seguiu o roteiro do mestre, lendo os grandes brasileiros por ele citados, a começar dos mais recentes. Leu Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, contemporâneos ao escrito, degustando especialmente os ensaios filosóficos do último e concordando com Shakir serem “maravilhosamente bem escritos”. Em uma sentada, traçou Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, a seguir, continuou o percurso retroativo na nossa literatura pelas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Gregório de Matos, Antonio Vieira, até chegar em Anchieta e Manuel da Nóbrega. Ouviu Villa-Lobos, a partir de uma coleção de vinis do sufi.

Quanta vida perdi em futilidades e idiotices, e com plena saúde! – refletia Taquinho ao retomar as lembranças desses meses intensos de estudos e meditações, em meio às atribulações de saúde, em que não lhe faltaram dores, insônias, pesadelos e febres. Mesmo assim, pensava que tudo lhe estava vindo como uma benção. Revia o quanto eram mesquinhos os desejos juvenis de que se mal alimentara, desde as bobagens da Disney até o fanatismo por Madonna, para ficar só nos dois. Como ficavam reles os tão propagados “valores ocidentais” perto dos que agora conhecia!

Além disso, desfrutava os clássicos da cultura islâmica e ocidental: Avicena, Al Khwarazmi, Ibn Battuta, Saadi, Omar Khayam, Averrois, Al Jahez, ao lado de Camões, Shakespeare, Cervantes, Dante e tantos outros. Aprofundava-se no Alcorão pelas leituras das suratas e ayats (versículos) e os comentários eruditos de um mestre da magnitude de Shakir. Sentia-se imensamente grato a Fadil, ao sufi e à filha, e se via como sendo recompensado pelas desditas de que fora vítima.

Aprendeu que os muçulmanos consideravam também, como palavras de Deus transmitidas aos homens, o Evangelho de Jesus Cristo, os Salmos de Davi, a Torá de Moisés e o chamado livro perdido de Abraão (Ibrahim para eles). A arrogância cristã ocidental insistia, porém, em tachá-los de sectários - que injustiça! Vivera a sua juventude indiferente à leitura do Evangelho, apesar dos apelos de sua mãe, porque as mensagens divinas são desprezadas no ambiente antiespiritual que é imposto à sociedade e ao povo de seu país, em particular à sua geração. Este, sim, é sectário. Prova disso é que, até chegar à casa do sufi, ele só sabia da existência do Evangelho e do Alcorão, e, deste, só por causa das origens de sua família. Sobre os demais nunca tinha ouvido falar. Agora, tinha-os consigo e sempre que os abria, no recolhimento daquele retiro a que fora levado pelo destino, era como se mergulhasse em oceanos de sabedoria.

Naquele ano, o Ramadã começou em 15 de outubro. Sua saúde não permitia que fosse a Meca acompanhando o sufi e a filha. Por segurança, a resistência tinha decidido que ele não poderia ser conhecido por mais ninguém, exceto pelos membros da cúpula, e não deveria sair da casa do sufi. Assim, o quinto pilar do Islã, a peregrinação a Meca (Haj), ficara a ele impedido. Mas vinha cumprindo com muita fé, entusiasmo e disciplina, sempre sob a orientação do mestre e de Zahirah, o Salat, as cinco orações de cada dia, o Zakat, as dádivas rituais, que ele pagava com trabalhos leves de jardinagem e de bibliotecário que eram possíveis ao seu estado de saúde, e não lhe era difícil o Saum, o jejum durante o Ramadã, pois ele praticamente o observava o tempo todo. O primeiro, a Chahada, ele já a recitava e a aceitava de plena fé, sem, contudo, ainda ter sido autorizado pelo sufi a fazê-lo diante das testemunhas que oficializariam a sua conversão.

Como as orações eram feitas obrigatoriamente em árabe – e ele possuía bom ouvido –, acabou assimilando a sonoridade do idioma e até se comunicava razoavelmente nele, pelo menos nas relações cotidianas com o pessoal e os donos da casa. A semana em que o sufi e a filha estiveram fora, aproveitou-a para dar uma boa adiantada no seu relato, quase terminando a parte de Guantânamo, a que, por certo, lhe fora a mais difícil. Um de seus assessores, que era intérprete e tradutor do português para o árabe, não escondia o entusiasmo com as qualidades do jovem escritor e trazia-lhe com freqüência as sugestões do outro assessor, que era juiz formado nos EUA, a quem levava resumos em árabe dos textos que Taquinho ia produzindo.

Ao deixar a cama e ir ao banho ritual de purificação para a oração e o encontro daquela noite com o sufi, Taquinho decidiu levar ao mestre, pela primeira vez, a íntegra do que havia escrito até ali. Desde que iniciara o duro trabalho de memória, este sequer fora mencionado nos encontros do discípulo com o mestre.

Era hora de apresentá-lo, ainda que por finalizar, e consultar o mestre sobre o que meditara para continuá-lo. Naquela noite, iriam ensaiar novamente a Chahada, cuja cerimônia se daria dentro de dois dias. Depois, ele iria ser submetido à sabatina como postulante a Mujahid. Esta seria conduzida à mercê de Deus, como costumavam dizer, e a honra somente lhe seria concedida pela unanimidade dos presentes. Se bem sucedido, ele passaria a ser membro da elite da resistência e ficaria à disposição do alto comando.

Capítulo 13