Capítulo 30

Ele acompanhara o noticiário pertinente ao caso com bastante atenção e podia intuir a dimensão do estrago. Diferentemente da Guerra do Vietnã, quando ainda havia vida inteligente e livre no jornalismo, o Pentágono agora manejava a seu bel prazer as cifras que comunicava pela imprensa. No Vietnã, tentava minimizar suas baixas e maximizar as do inimigo. No Iraque, contam como querem as suas próprias, quase uma por uma, e as do inimigo não lhes importa em nada.

Assim, o reconhecimento de 20 baixas próprias num só evento bélico significava, para quem sabe ler nas entrelinhas dos códigos comunicacionais, algo muito superior, transcendental e que nunca será revelado em sua verdade factual.

Durante todo o tempo em que vinha lendo o manuscrito, padre Antonio ia meditando estratégias para dar conseqüências ao projeto do autor e dos que o assessoraram. Na falta de um Hélder Câmara, que seria a pessoa ideal para definir um bom caminho de colocação do documento em instâncias jurídicas e institucionais de um poder capaz de levar a cabo o projeto, pensava em frei Leonardo Boff, de quem era amigo pessoal, correspondente assíduo e companheiro de militância.

Porém, ao deparar com o desfecho da tragédia, que, apesar de anunciado e antecipado lhe foi surpreendente e de enorme impacto, se viu obrigado a repensar tudo. Estava diante de um problema maior que tudo o que já enfrentara, talvez maior que o próprio mundo, imaginou. Sequer conhecia algum precedente a que pudesse recorrer e estudar. Como lidar com matéria tão explosiva?

Tal era o texto de Taquinho. Mesmo feito por incentivo de seu mestre e com assessoria especializada, o autor se revela senhor absoluto do conteúdo de cada linha que escreveu. Por sua extraordinária capacidade de apreensão de tanto conhecimento em tão pouco tempo, poder-se-ia dizer que o autor daquele texto era um gênio. Sem dúvida o era. E pensar que em Valadares ele se via como portador de uma deficiência vergonhosa – considerou o padre. Talvez, no Brasil, uma criança ou um jovem perceba assim a virtude da inteligência, eis porque fogem dela como foge o diabo da cruz! É a cultura ocidental dos nossos dias: o mundo e seus valores pelo avesso (Eduardo Galeano). Graças a Deus (Allah?), Taquinho livrou-se desses preconceitos e deu permissão à sua inteligência privilegiada para que se manifestasse e contribuísse com esta obra prima para o conhecimento humano.

Ele a escreveu com admirável domínio da qualidade que padre Antonio mais apreciava em qualquer texto: a concisão. Cada palavra era potenciada no máximo de significação e sentido e combinava-se magistralmente com as demais na impecável composição do talentoso autor; cada parágrafo era um manancial de conteúdos que agregavam valores muito para além da narração memorialista dos fatos ou do interese jurídico proposto. Estudiosos de filosofia, teologia, sociologia, antropologia e outras ciências humanas e do espírito poderiam extrair dali dissertações valiosas para o desenvolvimento e atualização de suas respectivas disciplinas. O próprio padre, na medida em que o ia lendo, projetava a redação de um comentário analítico e noticioso daquele raríssimo documento, a fim de prefaciá-lo numa futura publicação.

Se revelado publicamente, o desespero dos que nele são denunciados e desmascarados se manifestaria, com certeza, na forma que sempre lhes ocorre diante de toda e qualquer verdade bem expressada que lhes ameaça: a tentativa de desacreditá-lo como obra de encomenda ou teleguiada. Pois é só o que fazem eles no labor insano que praticam: atribuir aos outros seus próprios defeitos, equívocos e delitos, incluindo-se os seus crimes.

Assim, o problema se lhe apresentava em duas frentes distintas e sem solução à vista.

Num primeiro plano, teria a Igreja Católica interesse ou autoridade suficiente para defender o ato final protagonizado pelo jovem mártir? Ou ela mesma seria a primeira a condená-lo como pecador e terrorista, diante de Deus e dos homens? Estaria o Vaticano no rol do sionismo cristão, como insinuou o preceptor de Taquinho num de seus discursos que foram transcritos em partes ou em citações no corpo do memorial? Opus Dei... Taquinho menciona membros dessa “ordem secreta cristã” como assistentes convidados de sessões de tortura por que passou. Padre Antonio conhecera de perto o rosto dessa fera ultra-reacionária, auto-intitulada “Obra de Deus”, que tomou conta dos espaços de poder no Vaticano e nas hierarquias católicas quase todas, entre as mais influentes. Seria necessário dissolver até as mais flexíveis e rasas estruturações teológicas para aceitar que tamanho cinismo possa se tornar uma obra de Deus, e não dos homens - pensava.

“Tudo, até o mal, é obra de Deus”, eis o fácil sofisma desses fundamentalistas, como eram chamados no jargão acadêmico (“de fundamental mesmo, nessa gente, só o egoísmo” – costumava ironizar sua falecida irmã, que era historiadora). Com muitos deles padre Antonio tivera sérios entreveros e os mais poderosos se tornaram seus inimigos figadais dentro da igreja, no Brasil e no exterior.

No extremo oposto, “tudo, até Deus, é obra dos homens”. Com esses não lhe era tão difícil o diálogo. Apesar de ateus convictos, padre Antonio conservava na memória bons quebra-paus com alguns deles, a seu ver “cabeças duras, mas boas”. Certa vez, na casa do professor e ensaísta católico Edgard da Matta Machado, em Belo Horizonte, levara uma discussão com um deles enquanto chupavam jaboticabas dulcíssimas no quintal. “Dê-me uma só prova da existência de Deus”, disse-lhe o homem, tentando derrubá-lo. Padre Antonio escolheu uma das mais belas jaboticabas a seu alcance e a ofereceu ao seu contendor: “Prove esse pequeno fruto e diga-me se não há algo mais que mera nutrição e prazer do paladar na relação entre você e ele. Você não pode negar que há algo de sublime, de divino, nesta relação, a não ser que seja um insensível ou um teimoso irrecuperável. Algo ocorre ali que você não pode explicar, porque transcende a ambos enquanto seres cósmicos. Os místicos identificam nisto ‘a chama da vida’, a energia original, o ki, como dizem os chineses, ou o djin, para os indianos. E não me venha dizer que é obra dos homens. ‘As relações são mais reais e mais importantes que as coisas que relacionam’, diz um provérbio asiático colhido por Ernst Fenolosa, um linguista inglês que estudou a cultura oriental. Concordo que são dos homens as criações mitológicas de Deus ou dos deuses. Mas não há como negar que algo divino existe de fato na criação do kosmos e dos homens, e isto se revela principalmente nas relações mais sublimes que se estabelecem entre ambos. É o que faz com que o kosmos esteja contido inteiro nesta pequena jaboticaba, em especial, no momento em que você a degusta”.

Padre Antonio via na terceira parte do texto de Taquinho uma bela demonstração dessa sublimação relacional, no plano do espírito – a inteligência em aliança com a fé! Como já constatara desde o início da leitura, havia no texto uma transcendência que o levava muito para além da peça judicial, do memorial. A cada linha, o texto evoluía para um texto de descoberta, revelador de regiões do espírito e da consciência nunca antes visitadas e relatadas com tanta precisão e detalhes. Chegou a compará-lo às cartas de Vespúcio, reveladoras do Mundus Novus, a América, ou aos escritos de Pigafeta, o poeta que acompanhou Fernão de Maganhães na viagem de circunavegação da Terra. A diferença é que o nosso herói visitara, em si mesmo e no interior de sua própria consciência, as regiões mais impalpáveis e insondáveis da alma humana. Tal como um Orfeu contemporâneo, ele fora a continentes imateriais inexplorados e os abordou em ignotos limites, em lugares e situações de onde poucos que lá foram puderam retornar, muito menos relatar. O próprio ato final de imolação, tal como vem justificado e defendido no texto – e a bem da verdade –, não o distancia de Cristo; mais o aproxima. Cristo não teria também se deixado imolar após ter sido barbaramente torturado?

No contraponto, o chamado “poder real” – o poder material, do dinheiro, da mentira e da guerra, e, porque não dizer, o poder de manipular e de matar pessoas –, queda, tanto no calvário de Cristo como no de Taquinho, nas mãos desses infiéis. “São monstros que só têm cabeça e barriga; não têm coração!” – sentenciara certa vez irmã Margarida, escritora e amiga de padre Antonio, num congresso de escritores católicos em que participaram juntos, no Paraná. Nestes, é o ódio e não a fé que é cultivado, lado a lado com a intolerância e a violência. E se o de Cristo durou três dias, o que dizer de um calvário de três anos, acrescido do avanço tecnológico dos “romanos” atuais?

Em toda a sua extensão e complexidade, este raciocínio levava o hermeneuta ao plano seguinte, a uma questão perfurante: que magnitude de forças aquele documento, tão contundente quanto demolidor, despertaria se viesse ao conhecimento público? Ou a um tribunal, mesmo que sob sigilo? Seria possível avaliá-las, calculá-las? E, depois, enfrentá-las? Como e com quê?

De qualquer modo, ficava demonstrada de forma irrecusável a culpa dos EUA em crimes de guerra, de tortura e contra a humanidade a partir daquele documento, independente de seu desfecho. Não só poderia se comprovar autêntico e veraz com muita facilidade diante de qualquer tribunal como nenhum juiz digno deste cargo poderia rejeitar o fato de que, do ponto vista jurídico, do chamado Direito Positivo, foram os próprios EUA, por sua arrogância e prepotência, a causa principal dos atos da personagem central do atentado.

Assim mesmo, seria tolice ou ingenuidade contar com a prevalência da razão numa época em que a hipocrisia e o cinismo dominam as instituições em todos os níveis e em graus tão elevados que estas sequer se vêem chamadas a dar explicações ao menos razoáveis dos fatos que se desenrolaram em Nova York, no 11 de setembro de 2001. Ali, abriram-se as comportas do descaramento absoluto e do absolutismo mais bárbaro e cruel, jamais registrado na história. Invasões como as do Iraque e Afeganistão, atos bélicos de enorme importância mundial e de conseqüências previsíveis como catástrofes humanitárias e imprevisíveis para o futuro da Humanidade, são justificadas com mentiras primárias, incapazes de enganar uma criança.

Neste contexto – meditava o padre – a própria ONU se tornara mero ornamento dispensável no chamado “concerto das nações”. Perdera até a natureza política que a caracteriza enquanto instituição e por pouco não se deixa levar ao ridículo. Por pouco? Mas não fora esse mesmo congresso, que se postula como a mais alta instância da representação política mundial, que, por pressão abertamente sionista, votou uma resolução proibindo a Humanidade de questionar a existência do “holocausto” judeu na Segunda Guerra? A resolução não informa, mas é de se questionar: qual será a pena para os que a infrigirem? A excomunhão?

Mesmo a mais de três séculos do vexame histórico com Galileu, que até hoje ridiculariza a sua igreja – refletia o padre – esses desatinados não percebem que tais expedientes só fazem escancarar a fraude e, não, disfarçá-la. As verdades históricas não precisam deles para se imporem à eternidade, elas o fazem por si mesmas. Nunca faltou quem tentasse desacreditar a existência de Homero, de Shakeaspeare e até de Cristo. Mas quando lemos a Odisséia ou assistimos a uma apresentação de A Tempestade é com os autores Homero e Shakespeare que nos relacionamos através de suas obras. E o que dizer de alguém que não existiu e foi capaz de dividir toda a História em antes e depois d’Ele?

A madrugada já ia alta e um redemoinho de pensamentos girava na cabeça do velho erudito. Perguntava a si mesmo: “Por que Lourdes não lhe confiara o documento? Se o próprio filho dela o citara nominalmente, o que a levara a não atendê-lo?” Para tais questões, as respostas não eram difíceis: bastava-lhe imaginar a pobre mãe lendo aquele texto para entender a dimensão do seu sofrimento (nas especulações de alguns teóricos, talvez ainda maior que o do filho). Admirava-se que ela o tenha suportado a tal ponto, sem deixar transparecer tamanha dimensão do insuportável.

Na ponta oposta do mesmo redemoinho colocava-se ele, um padre e militante das causas progressistas que dedicara a vida a um preparo espiritual e intelectual que o tornasse capaz de enfrentar as questões humanas mais complexas, naturais e sobrenaturais.

Repassava em si os atributos que lograra em seu labor que pudessem lhe indicar um caminho a seguir. Examinava detalhadamente suas relações pessoais nos cleros católicos e não católicos, na política, na imprensa, na sociedade, o seu cargo de relator da Comissão de Direitos Humanos de uma postulada Igreja da Libertação, sua influência regional e nacional.

Assaltava-lhe a dúvida de a própria paróquia não ser capaz de assimilar a dimensão da questão, mesmo sob a sua orientação. Da cidade, do estado e do país, enquanto níveis de opinião pública, jamais poderia esperar qualquer coisa em favor da análise imparcial, da razão e da justiça. São feudos de obediência e bom comportamento sob os ditames e a desinformação propagada pela mídia hegemônica, de propriedade dos que se julgam “os donos da opinião pública”.

Quem poderia ser assim tão presunçoso para se julgar proprietário da opinião alheia? – especulava o padre – Há quem diga que certos “sábios” do Sion, sete deles, não mais. E seus seguidores, decerto. Com certeza, em transes de delírios, pois na presunção, ao que se sabe, nunca se hospedou sabedoria nenhuma.

No centro do redemoinho a pergunta, por sinal, a mesma que afligiu dona Lourdes, cada vez mais repetida e pontiaguda: “Que fazer?”

Nem pensar em escrever e tentar publicar uma denúncia, um protesto, mesmo sem dar nomes e situações precisas. Havia quase dois anos que não publicava em veículos de alcance significativo. Nos anos 60 e início dos 70, mesmo sendo perseguido e procurado pela ditadura militar ainda se via publicado em veículos importantes de oposição, alguns de alcance nacional, sob o pseudônimo Gil Vieira de Matos, e, até, por vezes, um texto de opinião num jornal da grande mídia. Gil era o seu codinome na resistência, e os dois sobrenomes homenageavam Padre Vieira e Gregório de Matos, dois célebres padres católicos brasileiros, também escritores, que admirava, entre outros de mesma verve, como o “Sátiro de Barbacena”, Padre Correia de Almeida. Mas, depois da década de 1980, já anistiado, seus escritos só encontravam espaços em pequenas publicações de resistência e, mais recentemente, em panfletos ou sites de movimentos sociais. No último artigo que escreveu, recusado por uma revista de circulação nacional dita “de resistência”, havia o seguinte trecho, do qual agora se recordava:

“O mundo foi colocado por eles em estado de guerra contínua e por diversas maneiras jamais experimentadas. É, antes de tudo, uma guerra contra toda e qualquer manifestação de vida inteligente e culta dentro e fora dos limites do que consideram como o império deles. É ver seus porta-vozes na televisão, ler seus jornais e revistas, ouvir as bobagens sonoras que propagam como ‘música’ e assistir aos seus filmes idiotas para nos vermos imersos no reino da estupidez e da mediocridade com que assolam o planeta sob o pretexto banal da ‘globalização’. Hoje, tal pretenso Império acha-se no direito de não reconhecer limites geográficos e nacionais; a presunção do seu núcleo de poder, que se pretende invisível e em covarde anonimato, é a de que o planeta é de sua propriedade exclusiva, e a Humanidade composta de cabeças de gado, inclusive para o abate.”

Padre Antonio não estava insone, estava extremamente ocupado. Não dormiu naquela noite e nem se sentia cansado quando, enfim, nas primeiras luzes da aurora e com os ruídos da cozinha e do refeitório se fazendo mais nítidos, decidiu-se.

Capítulo 31