Capítulo 29

Já dissemos antes e agora repetimos: não é nosso propósito tratar a questão das barbáries de Guantânamo e prisões similares. Confiamos que os mais competentes na matéria o façam de modo mais conseqüente, hoje e no futuro. Se o leitor quiser se aprofundar na questão, há inúmeros trabalhos de boa cepa disponíveis na Internet, inclusive sobre as muitas “coincidências” dos fatos registrados no pós-11 de setembro de 2001 – a “Lei Patriota” de Bush, as guerras, as perseguições religiosas e racistas, as diversas e mal afamadas prisões, a legalização da tortura e etc – com os das duas Santas Inquisições, a medieval e a espanhola. Recomendaríamos, por exemplo, os trabalhos do escritor e historiador canadense Michel Chossudovsky, em particular o intitulado O 11/9 e a Inquisição Americana, disponível em português no sítio Resistir. info.

Vamos continuar com padre Antonio, na leitura do restante do documento deixado pelo nosso herói. Ia pela madrugada quando, enfim, leu as últimas linhas das laudas finais do manuscrito. A terceira parte do texto, que encerra o relato principal, custou-lhe quase um maço de cigarros. Um hermeneuta como nosso padre não ficaria à margem de uma vírgula sequer daquele texto. Soube encontrar e decifrar nele quase toda a informação que poderia transmitir, mesmo as coisas que o autor não explicitou mas eram passíveis de análises e deduções hermenêuticas, semiológicas ou subliminares.

Padre Antonio foi capaz até de calcular a idade do preceptor de Taquinho, que ele estimou ter sido um sufi, um dervis ou um clérigo de alta cúpula da resistência iraquiana, uma vez que sabia não haver hierarquia religiosa no credo muçulmano. Calculou ser a idade do sufi mais ou menos a mesma que a dele, e quase acertou: ele completara 75 anos e o sufi 77, quando encontrou Taquinho pela primeira vez.

O decorrer da parte final do escrito foi para o hermeneuta uma enxurrada de informações de alta relevância sobre tudo que acumulara de conhecimento em sua vida de estudioso. Aquele texto como que potencializara as conexões de saber que foram sendo construídas por ele nos estudos e pesquisas que levou a cabo, despertando até as que se mantinham em estado de hibernação, fazia tempo, em sua consciência. Além do mais, as fagulhas poderosas dessa nova informação, que ele sabia hermetizada exclusivamente na sua pessoa, provocavam severos curtos-circuitos e alertas em regiões ainda pouco estáveis do processo de decantação e purificação do conhecimento e da razão. No interior do cérebro do hermeneuta reiniciou-se o combate da dúvida contra a certeza em certas regiões não totalmente clareadas, e que o tempo e as necessidades cotidianas mantiveram em trégua.

As duas primeiras partes do texto – de Brasília a Guantânamo, para ficar só nas coordenadas geográficas, e a estadia nesta última – provocaram sua revolta e indignação, as mais agudas, mas, ao mesmo tempo, aquelas informações não só vinham de encontro como confirmavam tudo o que conhecera e pensara a respeito de toda a realidade, pretérita e atual, que ali via arrolada sob quase todos os aspectos históricos ou dialéticos.

Porém, a terceira e última parte do texto realimentou no velho padre um penoso cisma (kisma, no sentido do rompimento) que desde a sua juventude, quando dos primeiros contatos diretos e eruditos com a realidade muçulmana e médio-oriental, se levantaram no interior, não só da sua consciência, como também de sua própria fé católica.

Naquela última parte, cada linha do relato do jovem autor – que fora como um filho seu, vivera e crescera em sua paróquia, fora por ele batizado e crismado e dele recebera a primeira comunhão; mais que isso, o padre desfrutara da convivência de amizade da mãe dele, do pai, do avô e dele próprio – causava no velho sacerdote uma gradual e sempre mais sofrida ampliação do pior sentimento que alguém possa ter no crepúsculo de uma carreira profissional: o fracasso.

Um fracasso que transcendia o pessoal e alçava-se aos limites de tudo em que acreditara, a que se dedicara e dera o melhor de sua vida. Perguntas do tipo: se a nossa Igreja estivesse cumprindo a verdadeira missão que a justifica neste mundo, teria aquele jovem talentoso e promissor se equivocado tanto em sua juventude a ponto de levá-lo a tão infausto quanto imerecido destino? E, em seguida: teria ele próprio, enquanto sacerdote, cumprido a sua missão perante aquele jovem que esteve tanto tempo sob a sua jurisdição confessional?

Lado a lado com tais questões, assomava a comparação, quase invejosa, com o trabalho meritório e tão bem sucedido do clérigo muçulmano, pois este, sim, cumprira de fato a sua missão. E, sem dúvida, a partir de uma situação muito mais desvantajosa que a dele. Mas as comparações não paravam aí, vinham em cascata. O credo católico e o muçulmano: qual o mais justo e que melhor atende às necessidades confessionais dos que cultivam ou querem cultivar a fé em Deus?

Nos debates que manteve ao longo do tempo, em pessoa ou em teoria, com certos pensadores, ele teve de enfrentar críticas severas ao catolicismo que o puseram, enquanto intelectual de preparo acima da média, em becos sem saída. Era-lhe difícil contestar teóricos como Weber e Walter Benjamin quando afirmavam que o cristianismo havia abandonado seus fundamentos originais e se tornara o pilar central do capitalismo e até do sionismo. Opus Dei... A própria história do cristianismo nada tem a ver com Cristo, mas tão só com o capitalismo, e este, uma religião em si mesmo, parasita do cristianismo, como tão bem demonstra Benjamin em um de seus escritos.

Isto dividira a Igreja Católica em dois blocos: o que mantém o poder institucional e econômico dela e é conivente com tal situação; e o que se mantém à margem de tais poderes, mas não abandona a Igreja e seus princípios originais, resistindo à sua decadência ao aproximá-la do povo humilde, apoiando movimentos sociais e lutando politicamente contra a pobreza e pelos direitos humanos. São os chamados teólogos da libertação, e padre Antonio está entre seus precursores no Brasil desde as décadas de 60/70, no trabalho que fez junto aos marinheiros e portuários, e, mais tarde, ao lado de Dr. Gusmão, entre os garimpeiros do vale do Rio Doce, libertando-os do trabalho escravo e insalubre a que eram submetidos. Entre estes, estavam o bom Cirineu e o jovem Eustáquio, que depois viria a ser o marido de Lourdes e pai de Taquinho.

A verdade, pensava o padre, é que hoje assistimos à decadência do capitalismo e, com ele, do cristianismo. Não é mais possível ocultar o fato de que a Igreja do Vaticano está mergulhada até o pescoço em escândalos financeiros, de máfias, pederastias e pedofilias, e, por isso, assistindo passivamente à evasão de seus fiéis e ao esvaziamento de seus templos. Enquanto isso, o número de adeptos de Maomé aumenta em todo o planeta, independente de ideologias e sistemas de governo a que se vinculam ou vivem.

Por sua parte, os sábios e líderes muçulmanos nunca permitiram que sua religião saísse dos trilhos que lhe deram origem; toda religião origina-se na tentativa de aperfeiçoamento do homem e da Humanidade, mas a maioria de suas igrejas, tão logo galgam qualquer espaço de poder, abandonam os preceitos originais e compactuam com quase tudo o que lhes é contrário, como são os casos da sua Igreja Católica Apostólica Romana e da maioria das igrejas cristãs de corte reformista, luteranas ou calvinistas.

O texto do jovem mártir valadarense explica bem por que isso acontece. Os muçulmanos têm o Jihad; os cristãos “a outra face”. A interpretação equivocada dessa polêmica postura de Cristo, que só Ele soubera explicar e convencer como manifestação de altivez e coragem, e não como ato de covardia, foi o que levou Nietszche a responsabilizar o cristianismo por “dois mil anos de humilhação da Humanidade”.

Foi quando chegou neste ponto, isto é, no desfecho do texto de Taquinho, que padre Antonio se viu diante da mais difícil encruzilhada de todo o seu sacerdócio.

Capítulo 30