Capítulo 15

Em seu texto, Taquinho mencionou a Chahada e a sabatina, que culminaram com a sua ordenação como Mujahid, como se tivesse recebido um diploma importantíssimo. Isto para dar uma dimensão de importância aos que o lessem com a ótica de avaliação pequeno burguesa e provinciana, como a de seus conterrâneos. E relatou, como uma reunião secreta, o encontro com “um sufi”, sob a mesma ótica, detalhando sobre as roupas com que se vestira e como se barbeara e se preparara para receber, pela primeira vez, informações confidenciais do alto comando da resistência iraquiana; assim demonstrando a confiança que conquistara.

Dona Lourdes não acreditava no que estava lendo. Agora, seus olhos já não derramavam lágrimas: ela sentia orgulho do filho. Como gostaria de tê-lo visto de terno, gravata e turbante no encontro com aquele sufi! Imaginava o filho de bigode e cavanhaque, belo e garboso como o avô Pedro na fotografia que ela guardava (bem escondida, por certo) de quando ele era jovem, igualmente de terno, gravata e turbante, mais ou menos na mesma idade que Taquinho teria naquele momento. Mas veio-lhe em seguida o sobressalto: ela havia visto pela televisão, no dia anterior, logo depois do almoço na casa da amiga viúva, o êxito do filho naquela missão que protagonizara como anônimo e principal ator.

Isto a alarmava terrivelmente, pois não se sentia preparada para o que ia ler. Ia passar às linhas que descreveriam como se engendrou a missão e como e porque ela deve ter sido realizada. Com certeza, nem os invasores daquele pobre país e nenhuma equipe de televisão saberiam disso. No ocidente, ela era única que tinha acesso àquela informação.

o-o-o-o-o-o-o-o-o

No dia seguinte, Fadil levou o novo Mujahid a um cômodo secreto, no subsolo do palacete Lá já estavam o sufi, o clérigo xiita que testemunhou a Chahada, dois comandantes da resistência armada e um membro da Inteligência.. Fizeram as saudações de praxe, as orações do meio dia, e, em seguida, o clérigo preparou o narguilé com esmero ritualístico. Antes de entrarem no assunto, todos fumaram o haxixe em silêncio. Esse rito, Taquinho já sabia, sempre precedia a decisões de grande importância.

O primeiro a tomar a palavra foi o comandante da resistência. Dirige-se diretamente ao Mujahid, sendo traduzido por Fadil frase por frase:

- A importância da missão é de tal ordem que estamos investindo nela praticamente todos os nossos recursos de Inteligência. Estamos dispostos até a abrir mão do nosso mais eficiente agente infiltrado na Zona Verde, cujo codinome é Khalid. O histórico dele, a mesma idade e a semelhança física com você foram fatores decisivos para a escolha do Mujahid. Muhammed, chefe da nossa Inteligência, vai agora lhe informar sobre os detalhes da operação.

Tomou a palavra Muhammed:

- Além da semelhança física, pode-se dizer que vocês são sósias. Outra condição de Khalid, que Deus Todo Poderoso concedeu a esta operação, é o fato de ele ter sido privado do uso da fala. Sua língua foi cortada na época da primeira invasão porque alguns de sua tribo atribuíram a ele a delação de posições ao inimigo. Expulsaram-no da tribo junto com a mãe, e ambos foram feitos prisioneiros dos invasores. Estes os venderam como escravos a um empresário europeu que mora em Bagdá e presta serviços de alimentação às tropas invasoras. Desde a demarcação da Zona Verde, ele obteve a concessão para explorar ali o restaurante dos oficiais, o qual dirige e gerencia pessoalmente, usando Khalid como serviçal. A mãe é empregada da casa dele, no centro de Bagdá, onde mora com o filho num porão.

Muhammed continuou a exposição do plano, mostrando papéis, mapas e fotografias que trouxera numa pasta. Daremos a seguir um resumo de sua explicação:

Duas ou três vezes por semana, a mãe de Khalid sai de casa com o filho, por volta das 11 da manhã, a fim de fazer compras, e depois o acompanha até os portões da Zona Verde. Parte das compras são, em geral, temperos frescos e típicos, que o filho leva para o restaurante, e a outra parte para o consumo residencial, que ela leva para casa. Numa das mercearias que costumam ir, é feita a troca do aparelho celular onde armazenam as informações que passam à resistência.

No dia três de janeiro, que será o “Dia D” da operação, ambos farão compras nesta mercearia e, no banheiro da mesma, Khalid será substituído por Faraj.

Quando Khalid entra com compras na portaria da Zona Verde, estas são sempre objeto de atenção e revista, e a identificação dele fica em segundo plano, praticamente restrita à passagem do cartão magnético numa borboleta e à digitação da senha numa porta de vidro com detector de metais. As compras passam na esteira de raios-x, como nos aeroportos, junto com a bolsa a tiracolo em que ele sempre leva uma garrafa térmica com café e uma merenda que a mãe lhe prepara. Ele não precisa de falar nada, pois todos ali o conhecem, sabem que ele se comunica com as mãos e alguns grunhidos que consegue emitir, e só a mãe é capaz de entendê-lo. De forma que ele sempre entra mudo e sai calado, e durante o trabalho só obedece às ordens que lhe são dadas pelo amo, pessoalmente ou pelo celular.

O trabalho dele limita-se a deixar as compras na despensa, quando as leva, e ir para a adega, ambos no andar térreo do prédio do restaurante, onde o patrão deixa separadas as garrafas de bebidas que devem subir ao restaurante, no andar logo acima. Ele pega as garrafas de seis em seis, uma em cada mão, e quatro postas numa espécie de suspensório de couro onde se prendem quatro bolsas para este fim. O apetrecho fica pendurado num prego, ao lado da porta da adega. Ele o veste para fazer o transporte, passando-o sobre os ombros e ajustando-o com uma fivela na cintura. É um trabalho de burro de carga. Com a carga, ele sobe a escada estreita que chega ao lado do balcão, no andar de cima, sobre o qual dispõe as garrafas para o barman organizá-las nas prateleiras. Em geral, a operação é repetida oito ou dez vezes, até que subam todas as garrafas, e deve terminar antes de o restaurante abrir as portas aos primeiros clientes, o que ocorre sempre ao meio-dia e meia. Tudo parece pensado para que o serviçal não tenha contato com clientes e funcionários, só com o amo. Às vezes, no decorrer do serviço, este usa o celular para ordenar-lhe que suba com mais garrafas, mas isto muito raramente acontece.

Durante a função no andar de cima, Khalid aguarda num depósito anexo à adega, onde come a merenda e ouve música num MP3, até que o amo lhe chame, depois de sair o último cliente, para descer as garrafas que não foram abertas e os cascos das que foram completamente esvaziadas. Feito isto, ele volta ao andar de cima e dá início à limpeza do chão e das mesas, encarregando-se também dos arranjos decorativos que as ornamentam para deixar o salão pronto para o dia seguinte, pois o restaurante, a não ser em ocasiões muito especiais, só abre para o almoço.

Nesse período, ele fica sozinho e é capaz de substituir, sem despertar suspeitas - nem mesmo da vigilância por câmeras de segurança -, os micro-gravadores que camufla nos arranjos decorativos de certas mesas e que são programados para gravarem as conversas dos oficiais, no almoço seguinte. Antes de deixar o serviço, ele usa o banheiro dos funcionários, onde transfere para o seu celular os arquivos gerados, os quais, não raro, trazem informações preciosas à resistência. O turno se encerra lá pelas quatro da tarde, hora em que ele normalmente volta para casa.

A missão de Faraj será rigorosamente ensaiada, nos mínimos detalhes, desde a sua entrada na Zona Verde, disfarçado de Khalid. Este obteve, com o celular, fotos de todo o percurso externo e do interior do restaurante e da adega. A resistência desenhou um mapa do local e conseguiu uma cópia da planta do prédio.

No “Dia D”, Faraj deverá cumprir a primeira parte do serviço e irá para o local onde Khalid fica ouvindo música, sentado num banquinho, na área de tanques anexa à adega onde fica também o depósito de cascos vazios, que o amo guarda para vender a falsificadores de vinhos e bebidas raras. Naquele local não há câmeras de segurança. Ali, num bueiro em desuso, Khalid vai esconder cinco garrafas de vinho preparadas, quatro com o primeiro composto do líquido explosivo e uma com o segundo composto. Os compostos serão paulatinamente levados na garrafa térmica de Khalid, misturados com café.

As quatro garrafas com o primeiro composto são frascos de um vinho raríssimo, o predileto do comandante-em-chefe das forças invasoras. Só é servido em ocasiões de gala ou quando alguma alta autoridade de governos aliados é recebida por ele no restaurante. Foram escolhidas por causa do formato inconfundível, e porque têm dois rótulos, um de cada lado, um em chinês e outro em português, o que as torna mais fáceis de serem identificadas pelo Mujahid. O nome do vinho é “O Esplendor do Império”, mas o comandante-em-chefe só o chama de “The Power of Empire”.

Ao ouvir isto, o sufi pediu um aparte. Disse que sabia a história desse vinho. Era produzido em Macau, na China, desde o século XVI, por jesuítas portugueses que ali plantaram o vinhedo e o fabricaram. O envelhecimento era feito em depósitos flutuantes, mar adentro, o que agregava uma qualidade especial e muito apreciada a seu sabor, por causa do permanente balanço das ondas. Parou de ser produzido há pouco mais de vinte anos devido às condições climáticas na região, que inviabilizaram o vinhedo. Cada garrafa custava hoje uma pequena fortuna.

Dele conta-se uma anedota, bem conhecida nos meios da diplomacia portuguesa: o vinho possui dois rótulos e tem este nome porque, quando os jesuítas recebiam chineses, eles o serviam exibindo apenas o lado da garrafa com o rótulo em chinês, em homenagem ao Império local. Quando recebiam portugueses, faziam o mesmo com o outro lado da garrafa. Então, alguém pergunta: e se lhes chegavam as duas delegações ao mesmo tempo? Aí, eles as dispunham numa grande mesa, uma delegação de cada lado, e serviam o vinho exibindo o rótulo certo para cada lado, de forma tal que os portugueses só viam os rótulos em português e os chineses só viam os em chinês. Os portugueses gostam de contá-la para se gabar de suas virtudes diplomáticas, o que, por sinal, disse o sufi, a anedota parece representar muito bem. Mas não era a piada típica de portugueses que os brasileiros costumavam contar, completou, olhando para Faraj, que estava risonho como os demais ouvintes, apesar de tê-la entendido aos pedaços, pois foi contada em árabe; apenas a última frase lhe fora repetida em português.

- Com certeza - falou o agente da Inteligência, provocando risos – o comandante-em-chefe já estaria pensando num terceiro rótulo para o vinho.

A intervenção de Shakir relaxou o ambiente até então um pouco tenso, e a todos aliviou a tranqüilidade e o bom humor do Mujahid. Este sugeriu, tentando se expressar num árabe claudicante, que aquele nome inspirasse o da operação, alterando-o para “O Esplendor do Islã”. Depois de Fadil ter repetido quase tudo em bom árabe para os que não puderam entender o de Faraj, a idéia foi aprovada por unanimidade e todos pronunciaram a expressão, um após o outro: (em árabe), “O Esplendor do Islã”.

Capítulo 16