Capítulo 8

Taquinho sentiu o impacto forte do pouso mal feito da aeronave, sem saber o que havia do lado de fora, nem se era noite ou dia, pois todas as janelas estavam fechadas e a penumbra de poucas luzes internas dominava o ambiente. Pouco depois da aterrissagem, mais luzes internas se acenderam e ele pôde ver outras poltronas como a dele à sua frente, algumas ocupadas. Percebeu-se vestido com uma só túnica de tecido vulgar que ia até seus pés sobre o corpo nu. Calçava umas sandálias velhas de couro cru, podia vê-las e senti-las. Passou-se algum tempo com a aeronave parada no solo quando, enfim, ele escutou vozes e a movimentação de pessoas. Um dos carcereiros do setor onde ficara em Guantânamo se aproximou e, rude como sempre fora com ele, tirou as algemas que lhe prendiam na poltrona e ordenou-lhe que o acompanhasse.

Para surpresa de Taquinho, não lhe foram recolocadas as algemas. Durante o tempo na prisão, aprendera inglês apenas o suficiente para saber que ordens lhe estavam sendo dadas e como cumpri-las. Praticamente não podia abrir a boca para falar enquanto esteve lá, pois sempre que tentara fazê-lo, apanhara como um cachorro. Seguindo o carcereiro, desceu pela porta traseira da aeronave e se viu dentro de um hangar com carros estacionados. Obrigaram-no a entrar e a se sentar no banco do meio de uma velha Kombi com dois homens no banco de trás e o motorista ao volante, todos em trajes civis. Nada de algemas.

A Kombi arrancou para fora do hangar e só então Taquinho viu o céu de um amanhecer um pouco nublado sobre a paisagem das adjacências de um aeroporto. Por cerca de meia hora, o veículo percorreu ruas e estradas de terra, quase desabitadas, de uma região arenosa e desértica, até que, em determinado ponto, estacionou. Os dois homens que iam atrás abriram a porta lateral da Kombi, e empurraram-no para fora. E foram embora.

“Enfim, estou autorizado a morrer”, pensou o jovem ao se ver só naquela paisagem desolada. A certa distância, longe da estrada, viu uma construção com muitos urubus pousados no telhado. Um cenário que, apesar do fundo desértico, lembrou-lhe o do matadouro na sua cidade de Governador Valadares. Constatou que de fato aquilo era um matadouro e que fora desovado num lixão de grande cidade. Apesar de estar quase desmaiando de fome, de sede, das dores em todo o seu corpo, em contraponto com uma sensação anestésica que lhe dificultava o tato e a percepção da textura de sua própria pele, além de exausto e quase completamente exaurido do instinto de sobrevivência, ele decidiu andar para longe dali até onde pudesse resistir para não deixar seu corpo a disposição dos abutres. Andou, não sabe quanto e por quanto tempo, até que avistou ao longe um perfil urbano difuso na quase opacidade das nuvens de poeira que o vento alçava sob um sol escaldante que já ia alto.

Reuniu todo o resto de forças que porventura lhe restavam e praticamente se arrastou pela estrada naquela direção. Começaram a surgir os primeiros transeuntes, em geral pessoas maltrapilhas, algumas também vestindo túnicas como a dele, umas poucas usando turbantes. Numa encruzilhada, ele pensou tomar a via mais populosa a sua esquerda, mas viu nela alguns cachorros soltos. Tinha tomado horror a cachorros, os torturadores os usaram para aterrorizá-lo, por isso mudou o rumo e foi pela outra via. Ninguém dava a mínima para ele em seu estado lamentável, empoeirado e suarento, claudicante, quase se arrastando. Por duas vezes, tombou ao solo e em ambas pensou em desistir. Porém, seguiu, entrou na cidade, num bairro periférico paupérrimo, com muita gente movimentando-se para todos os lados, carros e ônibus velhos, placas e sinalizações em caracteres estranhos e para ele absolutamente indecifráveis. Num certo momento, ele viu a abóbada de um edifício alto e se dirigiu na direção dela. Ao se ver de frente para a majestosa fachada do edifício chegou a pensar que estava delirando e andou até as escadarias que levavam à sua porta principal. Nos primeiros degraus deixou-se cair e pensou: “Aqui mesmo fico, adeus mundo sórdido!”

Deitado ali em desajeitada posição, ele nem ligava ao que estava à sua volta e olhava para o céu cinzento azulado, tentando relaxar-se para falecer com alguma paz interior em sua inusitada solidão. Foi então que seus ouvidos captaram os sons do diálogo de um casal que passava por ali. Falavam a sua língua e, à medida que se aproximavam, os entendia com perfeição. Estavam cada vez mais perto dele, e Taquinho, a ponto de desmaiar e vendo tudo escurecer, nunca soube explicar para si mesmo por que, tão desejoso como estava de desaparecer da face do planeta, reuniu suas últimas energias, em penosíssimo esforço, para gritar com o que lhe restava de força nos pulmões: “Ajudem-me, por favor!”

Quando abriu os olhos, se viu deitado num leito de enfermaria de um movimentado hospital. A seu lado, sentado numa cadeira, um homem lhe dirigiu a palavra e ele não só recordou a voz masculina que ouvira antes de desmaiar como entendeu perfeitamente o que lhe estava sendo dito em sua própria língua pátria, coisa que há muito tempo, muito mesmo, quase uma eternidade para ele, não lhe ocorria.

- Quem é você? – perguntou ele a Taquinho – Como chegou até aqui? Você fala português?

Taquinho custou a estabelecer um diálogo inteligível com ele. Pensou que era um médico e se apavorou, pois tinha tomado pavor de médicos. Tinha dificuldade de controlar a voz, às vezes não lograva emiti-la, outras falava muito alto por nervosismo e excitação. Mas o homem foi gentil, acalmou-o e, pela primeira vez desde que deixara o Brasil, Taquinho sentiu um ser humano amistoso diante de si.

Aos poucos foram conseguindo comunicação. Taquinho ficou sabendo que estava num hospital de Amã, capital da Jordânia. Tinha sido examinado detidamente e recebera vários medicamentos, soros e vitaminas. Disse o homem que seu corpo trazia muitos sinais de ter sido torturado barbaramente e o corpo médico do hospital estava aguardando que se reanimasse para interrogá-lo, antes de qualquer outra providência.

Taquinho então falou em Guantânamo. Ao ouvir essa palavra, o homem pediu que não falasse mais nada e fingisse que permanecia desacordado. Iria buscar-lhe roupas para tirá-lo imediatamente dali. Praticamente ordenou-lhe que o aguardasse retornar e que não falasse com ninguém. Ia saindo quando Taquinho perguntou-lhe:

- Que dia do ano é hoje?

- 15 de agosto.

- De que ano?

- 2004!

Taquinho chorou.

Capítulo 9