Capítulo 21

Dona Lourdes acabara a dolorosa leitura do relato do filho lá pelas duas da madrugada. Desde que passara a parte de Guantânamo, ela não tivera mais lágrimas para enxugar, nem mesmo no final do relato, onde se anunciava a tragédia que, ela sabia, ocorrera. Uma profunda nostalgia dos tempos de criança, época em que se falava muito sobre a região de onde vieram seus pais e avós, invadia o seu espírito a cada linha escrita pelo filho. Naquela época, os demônios que ameaçavam o ocidente eram os comunistas, não os muçulmanos. E agora, muçulmanos são todos os que têm origem médio-orientais. Não importa que sua família tenha sido, tradicionalmente, cristã e católica; é bastante ter um Raghid no nome para ser considerada muçulmana, isto é, para a imprensa atual, suspeita de ser “terrorista”.

Sentia-se, agora, ao final da leitura, muito cansada e ao mesmo tempo atônita. Mas estava insone e queria meditar mais sobre o que lera e relera tantas vezes, sem entender por que tudo aquilo estava acontecendo com ela.

Apesar de se saber da mesma origem das vítimas que causava, a guerra no Iraque só a tocara superficialmente, como a todo o seu pequeno mundo provinciano. Para ela, nunca passara de “mais uma notícia” nos jornais e tevês. Jamais imaginara que poderia um dia estar tão dentro dela como agora. E não fazia a menor idéia de como proceder.

Resolveu ligar a televisão e, depois de mudar diversos canais, deu com um noticiário “extra” mencionando sucintamente o atentado. Nele se difundia, como notícia de “última hora”, o comunicado da Al Qaeda responsabilizando-se pelo ocorrido. Esta não era a primeira vez que ela experimentava, na própria pele, a irritante sensação provocada por falácias publicadas na imprensa. Na ocasião da morte de seu marido, ficara estarrecida com a capacidade dessa mesma imprensa em mentir descaradamente e distorcer os fatos mais flagrantes. Em seu relato, o filho informava, de fonte segura, que a tal “organização terrorista”, a Al Qaeda, não passava de uma invenção difundida pela imprensa ocidental a serviço dos interesses norte-americanos. Além do mais, a notícia era dada como se o local atingindo estivesse repleto de gente inocente e indefesa.

Injuriada, ela desligou o aparelho e resolveu apagar as luzes e fechar as janelas para tentar se relaxar na poltrona e meditar. Estava tensa e não queria ser surpreendida outra vez por seu Jaime, o padeiro. Calculava que metade de Valadares já estaria sabendo daquela primeira vez, e tinha certeza de que a outra metade se inteiraria da “estranheza do comportamento de Dona Lourdes” se acontecesse novamente. Não se espantaria se já estivessem especulando à boca miúda sobre algum “caso” secreto, algum “amante” misterioso, ou qualquer outra bobagem do gênero.

Passou a concentrar-se no “que fazer”.

- E agora, Lourdes? – perguntava-se a si mesma – Você não tem mais ninguém, nem mesmo a esperança de que o filho um dia retorne ao lar.

Pensou no padre Antonio. Taquinho sugerira o nome dele, mas tal sugestão ele dera ao falecido pai e não a ela. Se Eustáquio estivesse ali, com certeza seria um bom começo para que fizessem alguma coisa. Mas, sozinha, ela se considerava incapaz de dar um passo, mesmo nesta sensata direção proposta pelo filho. Não se via em condições de enfrentar o que viria depois. Previa a enorme revolta que tomaria padre Antonio. Ele iria mover mundos e fundos e botar a boca no mundo, pedindo justiça. Era um homem digno e admirável, e muito inteligente. Ela o conhecia desde que veio para Valadares, nos anos 60, fugindo da repressão da ditadura militar. Era um padre que gostava de envolver-se na política, nas questões dos direitos humanos, um crítico severo das desigualdades sociais, e um militante ativo das teses da teologia da libertação.

Mas eram justamente tais atributos, que alimentavam nela uma grande admiração por padre Antonio, que agora a faziam vacilar. Não por ele, mas por si mesma. Padre Antonio seria capaz de conseguir repercussão para o caso, disso ela não duvidava. Porém, tal repercussão era o que ela mais temia. Como a enfrentaria? Com certeza, ela passaria por uma situação semelhante a que passou com a morte do marido, só que em escala mundial.

Por um lado, solidário e confortador, mas, pouco influente na realidade imediata, ela teria a compreensão das pessoas sinceras que saberiam avaliar os fatos com inteligência própria, critério e senso de justiça.

Por outro lado, mais poderoso e cruel, ela se veria afrontada por injustiças e humilhações as mais infames. Veria o filho nas páginas dos jornais acusado de “terrorista” e degradado à condição do pior dos mortais. Não vacilariam em atirar lama nas origens orientais dele, dela mesma, seus pais e seus avós. Nunca dariam ouvidos a argumentos de defesa, de razão e de justiça, distorceriam os fatos da forma mais abjeta e irresponsável, perseguiriam os que ousassem ajudá-la.

Desta vez, pensava, nem Dr. Benedito se arriscaria a apoiá-la; e ela teria de compreendê-lo. Era possível que as amigas viúvas fossem afetadas; a própria causa delas, em andamento de vitória, acabaria se revertendo em derrota. Perderia todas as freguesas. Apavorava-a o futuro que via diante de si. Não que lhe importassem as desditas que lhe viessem, ela as enfrentaria todas pelo filho – mesmo se sabendo derrotada desde o começo –, se tivesse alguém seu e junto de si para lhe dar as mãos e os ombros e consolá-la.

Fora isso, ela mesma se sentia incapaz de compreender o que ocorrera, e nem de avaliar a dimensão da complexa realidade em que o filho se metera. Não se via culta e informada o suficiente. Leu muito mais com o coração de mãe do que como leitora consciente. A maior parte do que lera fora assim; passagens inteiras leu sem captar sequer o sentido e a razão que sabia estarem ali e ela não lograva penetrar. Julgava-se por demais ingênua para defender o filho diante do poderio avassalador de um inimigo que se voltaria ferozmente contra ela, contra a memória dele e de tudo o que a ele fosse relacionado.

Absorta, no silêncio da madrugada, ela ouviu o portão sendo aberto e os passos do padeiro até à sua varanda. Logo depois, as primeiras luzes da aurora começaram a revelar o interior da sala. Viu os papéis espalhados sobre a mesa e decidiu arrumá-los do mesmo jeito que lhe chegaram, o que fez meticulosamente e com cuidado para não danificar o precioso documento.

Tomou café-com-leite bem quente e comeu um pão fresco com manteiga. Esperou o relógio marcar oito horas para ligar e cancelar o único compromisso do dia, com uma de suas freguesas. Estava exausta, confusa e, mesmo contra a vontade, não teve outra alternativa senão vestir uma camisola e ir deitar-se para tentar dormir um pouco. Dormiu abraçada ao envelope.

Capítulo 22