Capítulo 14

Ao retornar da sabatina, Zahirah apresentou ao Mujahid o novo apartamento em que ficaria hospedado, com um quarto muito mais amplo, sala de estar, sofisticada sala de banho toda em mármore branco e varandão exclusivo. Ficava no segundo andar da ala sul do palacete, onde se alinhavam vários outros aposentos semelhantes, tal como num hotel de luxo. Tinha uma vista magnífica para a parte mais nobre do jardim que rodeava a bela arquitetura mourisca do edifício e para toda a cidade de Bagdá. Disse-lhe que ele passara a ser hóspede de honra da casa. Ela mesma havia redecorado o espaço, que era da falecida mãe de Fadil e tinha a predominância da cor laranja, a preferida da antiga moradora. Zahirah conhecia o trauma de Taquinho por aquela cor, a mesma dos uniformes dos prisioneiros de Guantânamo, e tratou de substituir cortinas, estofados, roupas de cama e os detalhes de decoração pelos tons de verde, que sabia ser a cor predileta do novo Mujahid. O guarda-roupa, a escrivaninha, os livros, os equipamentos hospitalares que ainda permaneciam para o atendimento médico, e tudo o mais, foram transferidos para lá. Ao guarda-roupa, foram acrescentados um terno cortado pelo alfaiate do sufi em tecido da escolha de Zahirah, e três gravatas, igualmente escolhidas pela bondosa anfitriã. Ela sugeriu que usasse o terno, num belo tom escuro de jade, e uma gravata ocre com motivos gráficos (arabescos) em ouro, no dia seguinte, quando iria receber uma visita do sufi, logo após o almoço. E o ensaiou mais uma vez nos gestos habituais do salam alakum (Deus esteja contigo), a saudação árabe, que, a partir de então e de acordo com a etiqueta muçulmana, ele faria ao encontrar-se com outros muçulmanos.

No dia seguinte, na hora marcada, Zahirah chegou com o sufi nos novos aposentos do Mujahid. Era a primeira vez que o hóspede/discípulo tinha a honra de receber o anfitrião/mestre em seus aposentos. O sufi, ao ver aquele homem elegante - muito bem vestido, bem barbeado e ostentando o turbante ornado pelo broche de esmeralda -, saudar-lhe no rigor da etiqueta árabe, não pôde evitar compará-lo mentalmente ao trapo humano que ele encontrara num esconderijo da resistência, quando se viram pela primeira vez. E não conteve a satisfação que lhe trouxe aquela transformação. Depois da saudação ritual, sorridente, abraçou fortemente o discípulo.

Zahirah se despediu dos dois e saiu, fechando a porta. O sufi sugeriu que fossem conversar no varandão, onde se assentaram nas confortáveis poltronas de vime que o mobiliavam. Nos céus de Bagdá, via-se uma nuvem de fumo negro subindo de um bairro periférico, ao longe, quase do outro lado da cidade.

- Outro atentado suicida contra um mercado de um bairro pobre – comentou o sufi – acabou de acontecer e é dos grandes; com mais de cinqüenta vítimas inocentes!

- Tenho visto vários na televisão – retrucou o jovem – não podem ser obras de Mujahids, por tudo o que aprendi, sei que não. Dizem que são muçulmanos e Mujahids, falam do Jihad, mas eu não acredito. Quem são os verdadeiros autores dessas atrocidades?

- Você os conhece bem, foi hóspede deles por quase três anos. A CIA é a mais poderosa empresa de terrorismo que já existiu na face da Terra. Ainda se vale de velhas táticas ocidentais para denegrir a nossa cultura, como nas Cruzadas e na Inquisição. É o racismo, a intolerância, enfim, o poder do terror: matanças, torturas, genocídio, o amedrontamento das populações indefesas. Registram-se desde o incêndio da Biblioteca de Alexandria, que insistem em atribuir a nós, muçulmanos, os maiores amantes do livro em todas as épocas. Recentemente, no final do século 19 da Era Cristã, acrescentaram-lhes a face macabra e cruel do sionismo.

- Ainda não pude estudá-lo a fundo, apesar de vê-lo mencionado em vários textos recentes. É uma religião?

- Abdallah I, a quem conheci pessoalmente, que é avô de Hussein, o atual monarca da Jordânia, gostava de ridicularizar a imprensa ocidental quando nos acusava, a nós, árabes, de anti-semitas. Ora, nós, como os judeus, somos também filhos de Sem, o filho de Noé, ou seja, somos semitas. Abdallah afirmava com razão, e meus estudos a respeito confirmam-no, que os judeus sempre foram perseguidos por nações ocidentais e cristãs. Eles mesmos têm de admitir que nunca, desde a Grande Diáspora, desenvolveram-se com tal liberdade e alcançaram tanta importância quanto na Península Ibérica, enquanto esta foi possessão árabe. Com poucas exceções, os judeus viveram durante séculos no Oriente Médio em completa paz e amizade com seus vizinhos árabes. Damasco, Bagdá, Beirute e outros centros árabes sempre incluíram prósperas comunidades judias. Até o início da invasão sionista na Palestina, os judeus receberam de nós um tratamento muito generoso, coisa que jamais ocorrera na Europa cristã. Hoje, pela primeira vez na história, eles começam a sentir os efeitos da resistência árabe ao assalto sionista. A grande maioria está tão ansiosa quanto os árabes para que chegue o fim do conflito. Aqueles que entre nós encontraram lar acolhedor ressentem-se, como nós, da chegada de tantos estrangeiros. Como venho afirmando em meus artigos, o sionismo não é mais que uma doutrina forjada para a manutenção, a qualquer custo, do capitalismo em decadência. E, por conseguinte, dos privilégios destes que se julgam os donos do mundo. Não é religião, pois não tem fundamentos na tradição nem na História. Não é ideologia, pois não se sustenta em idéias lógicas ou científicas. Não se pode dizer que seja movimento político ou cultural judáico, ou de parte do povo judeu, pois de nada lhe serve, só o prejudica, nem o integram somente judeus. É, em verdade, uma fraude, que se disfarça no alegado combate ao anti-semitismo, imposta pelos grupos financistas e empresariais transnacionais, em especial os grandes complexos banqueiros e bélicos, para justificar termos como “guerra preventiva”, “terrorismo”, “eixo do mal” e outras criações de propaganda que enganam a opinião pública ocidental e judaica diante da escalada desumana e belicista em que se viu metido o Império norte-americano. Israel se auto proclama “estado judeu”, mas não é propriamente um país; é a maior base militar dos EUA, fora deles. E os EUA não são exatamente uma nação, mas uma sigla emblemática das elites capitalistas que formam o poder central do Império. O sionismo é, assim, a doutrina remanescente da fracassada política externa desse Império, toscamente redigida para ser a mais cruel manifestação anti-semita e anti-humanista jamais registrada na História. Tem evoluído de tal modo que já se pode falar de sionismo cristão e sionismo muçulmano, pois é integrado basicamente por membros das elites poderosas judias, cristãs e até muçulmanas - como as egípcias, jordanianas e sauditas –, e seus agentes civis, militares e mercenários. A totalidade dos atentados terroristas mais letais que são divulgados com estardalhaço na mídia é obra deles e desta mesma mídia que controlam. Têm por objetivo demonizar o Islã perante a opinião pública mundial e justificar a sua ação bélica contra nós. O 11 de setembro de 2001, em Nova York, é o exemplo mais contundente de tal estratégia.

- Mas quem seria capaz de matar-se assim, dessa forma e por um motivo tão vil?

- Há loucos e desesperados em toda parte. Vendem a alma e a vida com facilidade. E dinheiro é o que não falta ao sionismo, que, hoje, é sinônimo de terrorismo; o verdadeiro terror provocado pela matança, o genocídio e a barbárie que patrocina nos quatro cantos do mundo. Há também os ingênuos e os idealistas. Desde o começo desta guerra, e falo de 1990 para cá, nossos Mujahids não realizaram mais que nove missões estratégicas de martírio, todas dentro de critérios rigorosos e com resultados importantíssimos em favor do Islã. Mas apenas dois deles foram divulgados pelos mais poderosos meios de comunicação, e, mesmo assim, distorcendo completamente os fatos, negando a verdade e minimizando as derrotas militares que sofreram.

Shakir fez uma longa pausa, com o seu olhar fixado na nuvem de fumo no céu de Bagdá. Seu rosto estampava uma preocupação grave e uma profunda tristeza interior. Súbito, se reanimou e retornou ao diálogo com Taquinho:

- Bem, eu não vim para falar disso; vim por dois motivos: comentar sobre seus escritos e introduzi-lo nos propósitos de sua missão. Li todo o seu trabalho até o ponto em que me entregou e quero dizer-lhe que, além de grato, fiquei orgulhoso da sua coragem e do seu talento. Poucos homens eu conheço capazes de enfrentar o que você enfrentou ao redigir sobre a sua estadia em Guantânamo com tanta riqueza de detalhes. Sou um velho que já passou por quase tudo na vida, mas a sua descrição me comoveu a ponto de fazer brotarem lágrimas em meus olhos. Estou certo de que você seria ótimo escritor ou um jornalista excepcional se não lhe tivesse ocorrido o que ocorreu. E fico-lhe muito grato por ter atendido ao meu pedido. Acredito que este documento poderá ser de grande valia para os ocidentais conhecerem um pouco de si mesmos e refletirem mais sobre o que são. Além disso, você retira a máscara de falsidades que foi construída em torno da prisão de Guantânamo desde a data mesma em que os EUA, oficialmente, reconhecem tê-la criado - segundo eles, em janeiro de 2002 -, portanto, meses depois de estar sendo usada secretamente, pelo menos a partir do 11/9. Seu depoimento confirma muitas denúncias bem informadas que vêm se registrando a partir da catástrofe de Nova York até hoje, oferecendo as provas sólidas que lhes faltavam. Confesso-lhe agora que não faço fé nos tribunais nem na capacidade das autoridades ocidentais em rever suas políticas imperialistas. Mas é preciso que acreditemos na História, e ela requer documentos incontestáveis como este seu depoimento. Refletindo mais sobre ele, devo dizer que concordo com todo o seu projeto, e o meu ponto de vista é o de que você deve continuá-lo até o último momento, incluindo nele a informação sobre a sua missão.

- Mas isto não poderia comprometer a resistência e não daria margem para que o usassem como prova de que somos nós os terroristas?

- É possível que sim, e esteja certo de que eu não proporia isto se não fosse você o autor do documento. Penso que você está plenamente capacitado a tratar a questão moral que envolve os fatos de forma a deixar bem claros a essência deles e o real papel dos protagonistas. Você saberá conduzir este memorial para que ele se torne ainda mais importante, mais revelador e mais contundente. Não devemos omitir a verdade quando somos capazes de expô-la com clareza. E você será capaz disso, eu confio em você.

- Quando vou conhecer os detalhes da minha missão?

- Este é o segundo motivo da minha visita. Devo introduzi-lo nela agora e, amanhã, faremos aqui em casa uma reunião secreta com alguns membros da cúpula, na qual lhe serão adiantados os detalhes. Os planos estão em fase final, e é uma missão de primeira grandeza. Teríamos outros Mujahids aptos a executá-la, e eles até gozariam de prioridade pela honra de protagonizarem-na, mas a sabatina de ontem fez a cúpula decidir por você. Parece-me que há também outras razões, as quais ainda desconheço, que nos levaram à sua escolha. Eu mesmo fiquei surpreso quando me comunicaram ontem à noite, pois sei tudo sobre a importância dessa missão.

- Desculpe-me por não conter a minha ansiedade, mas fiquei curiosíssimo.

- O exército dos EUA vem preparando uma força de elite para atuar no front em Bagdá. São 200 oficiais muito bem preparados que passaram três anos na Jordânia internados numa espécie de escola criada exclusivamente para eles, e na qual só se fala o árabe. Lá, nossos costumes, hábitos, cultura e religião foram rigorosamente estudados nos mínimos detalhes, mas com a particularidade de que não foram dirigidos a fazerem-nos iniciados ou adeptos, e sim a torná-los poderosos inimigos do Islã. Terminaram o treinamento no final de novembro, passaram alguns dias com seus familiares nos Estados Unidos e agora estão sendo trazidos para cá. Devem iniciar suas missões já no próximo mês de janeiro. Cada oficial vai comandar um batalhão bem treinado e com experiência local, além de estarem equipados com todo o aparato tecnológico e logístico para varrer Bagdá de ponta a ponta, bairro por bairro, casa por casa, com o objetivo de acabar com o comando central da resistência que já sabem, ou suspeitam, estar em Bagdá. Depois se deslocarão para outras cidades, até que se cumpra a “limpeza” de todo o país. A ordem é de só fazer prisioneiros se estes colaborarem com eles. Os que se negarem serão eliminados. Não serão poupados os locais sagrados, as mesquitas, as madraças, as residências de místicos e clérigos. Nem as daqueles que eles pensam ser seus aliados ou colaboradores, como é o meu caso. Estes homens representam uma real e perigosa ameaça à resistência e ao Islã, eis porque, desde que a nossa Inteligência teve conhecimento do projeto, começamos a formular planos para impedi-los. São 200 homens e mulheres bem armados e preparados para uma guerra de extermínio e que trazem em seus destinos um verdadeiro genocídio contra o nosso povo. Eles poderão, de fato, destruir a nossa resistência armada. O Islã, com a graça de Deus e a nossa fé, haverá de fazer com que tais destinos não se cumpram jamais.

- E quantos deles tocam a mim?

- Por incrível que possa parecer, todos ou quase todos! O excesso de confiança parece tê-los conduzido a um erro grave. O projeto foi realizado sob tal sigilo que eles sequer imaginam que nós tenhamos alguma idéia da sua existência. Por isso, decidiram que a vinda desses oficiais deveria se dar da forma usual para não despertar suspeitas de que algo diferente estaria por vir a Bagdá. Estavam todos aqui ao lado, em Amã, e retornaram aos EUA para depois virem de lá, para Bagdá. Os invasores sabem que acompanhamos todos os seus movimentos, desde que se conduzem para cá e chegam ao país, em qualquer ponto e por qualquer meio de transporte. As tropas frescas que vêm dos EUA chegam normalmente no final de cada ano cristão, de modo a que os substituídos possam passar as festas de Ano Novo com suas famílias. É como uma recompensa aos que lutaram. Em geral, os novos chegam um pouco antes para as trocas de guarda e para estar em condições de assumir efetivamente seus postos logo no início do novo ano. Mas, antes, os novos oficiais e comandantes fazem um almoço de confraternização no restaurante dos oficiais na Zona Verde. O dessa turma já foi marcado para o dia três de janeiro, e os nossos alvos deverão estar todos ou quase todos lá. São militares treinados para agredir o Islã. Lá não estarão crianças, velhos, nem mulheres inocentes. Tais condições nos autorizam ao uso do Jihad. Amanhã, ficaremos cientes de todos os detalhes do plano concebido pela resistência.

Capítulo 15