Capítulo 24

Este 11 de fevereiro fora especial e marcante para padre Antonio. Caíra numa sexta-feira, e a festa seria no domingo, motivo pelo qual a paróquia já se agitava nos preparativos. Ainda assim, sempre no próprio dia 11 a missa das seis da tarde era toda especial, com coro e órgão, e grande audiência. Pela primeira vez nos últimos quinze anos, dona Lourdes não estava à frente da organização da missa e da festa de domingo.

O leitor não sabe, pois ainda não foi informado, que foi este o dia do nascimento de dona Lourdes. Além de ser o dia consagrado à Virgem dos Pirineus, outros bons motivos levaram o pai dela a batizá-la com o belo nome: em primeiro lugar, homenageava a desditosa esposa Laila, falecida no dia em que deu a luz à filha e fiel adepta da milenar devoção dos cristãos libaneses à Virgem Maria. Homenageava também a França, país em que nascera; a paróquia em que se estabelecera; e o pároco francês que a fundara, o saudoso padre Maurice, de quem gozara uma sincera e quase íntima amizade e fora devedor de muitos e desinteressados obséquios, que ele procurou pagar cortando as batinas dos padres da paróquia sem cobrar pelo serviço.

Possivelmente, a extrema-unção de Laila e o batismo de Lourdes foram os últimos sacramentos que padre Maurice, já bem velhinho, celebrou antes de falecer poucos meses depois. Padre Sinfrônio, seu discípulo e sucessor no comando da paróquia, o assistiu em ambos e acreditava ser a recém nascida iluminada pela santa, por isso a tratava como paroquiana e devota predileta.

Quando estivera ali pela primeira vez, em maio de 1966, numa breve estadia de contatos com líderes sindicalistas dos garimpeiros da região, padre Antonio viu a coroação da Virgem pela menina Lourdes, a última de seis coroações seguidas que protagonizara, pois desde os sete anos era a escolhida para o importante papel principal dessa celebração festiva. Naquele dia, se conheceram e manifestaram grande simpatia um pelo outro. Desde então, Lourdes e ele cultivaram uma amizade fraternal e um companheirismo que jamais negligenciaram.

Mesmo estando bastante cansado da viagem, padre Antonio fez questão de ajustar o despertador para seis da manhã, a tempo de pegar o início do “jornal da paróquia”, que era como os padres, sacristãos, funcionários e empregados chamavam o horário de seis e meia até sete e meia, durante o qual era servido o café da manhã no refeitório da paróquia. Preocupara-se com a conversa do chofer sobre dona Lourdes, mas conhecia bem os exageros daquela gente provinciana. Sua opinião pedia detalhes e exigia informações mais confiáveis para se formar.

Foi o primeiro a sentar-se na comprida “mesa do pároco”, e as duas cozinheiras, Luzia e Graça, disputavam entre si a primazia de dar a ele as notícias de dona Lourdes. Teve de pôr ordem nas duas e deu a palavra primeiro à língua menos “afiada” e mais moderada da quarentona Luzia. Como previra, as notícias não eram boas. Desde o dia da viagem do padre, dona Lourdes se enfurnara em sua casa e não saía de lá nem para ir à missa. Fazia compras por telefone ou pelo Joãozinho da Bicicleta (que sucedera a Taquinho no ofício e na clientela, valendo-se, inclusive, da mesma bicicleta, que lhe fora cedida por dona Lourdes). A última vez que ela viera na Igreja fora na missa de Bernadete, celebrada por padre Belizário, às seis da manhã daquele sábado.

- Na segunda-feira – interrompeu a sexagenária Graça – seu Jaime da padaria, que já desconfiava e me disse “em segredo” sobre a estranheza do comportamento de dona Lourdes, falou que o pão e o leite que tinha entregado no domingo ficaram lá na varanda, do mesmo jeito que deixou. Ficou preocupado e voltou mais tarde para ver se ela estava bem. Ela o atendeu da porta e se desculpou, dizendo que não havia saído de dentro de casa para nada no domingo por estar indisposta, por isso se esqueceu.

Neste momento, chegou padre Belizário, que acabara de celebrar a missa das seis, e as duas linguarudas, percebendo que era a vez dele, se despacharam, até porque mais comensais chegavam no cenário delas. Depois de cumprimentarem-se, padre Belizário sentou-se ao lado dele e conversaram quase aos cochichos. Justificou nada ter mencionado durante a a ausência do pároco por não ter havido urgência ou alarme a não ser nas especulações dos fofoqueiros de sempre, e nem o que padre Antonio pudesse fazer estando fora.

Contou que dona Lourdes enviara pelo Joãozinho da Bicicleta cartas a todas as freguesas comunicando o encerramento de suas atividades de costureira. Duas foram mostradas a padre Belizário. A de Maria, esposa do Dr. Leandro, e a de Antonieta, do Dr. Gusmão. Eram quase idênticas, delicadas e bem educadas: a missivista agradecia as destinatárias pela honra da preferência, manifestava ter sido feliz em servi-las, comunicava a cessação das atividades por decisões de foro íntimo e pedia-lhes compreensão.

Para o Lar, ela enviara uma bem escrita carta de renúncia irrevogável junto a um bilhete para padre Belizário pedindo para que não se preocupassem com a ausência dela, que não atrapalhassem a viagem de padre Antonio com aflições sem fundamentos a respeito dela, e que aguardassem a sua chegada, pois a ele se explicaria pessoalmente, quando lhe conviesse ouvi-la. Ambas estavam na gaveta da mesa dele, na sala de administração da paróquia. Maria, do Dr. Leandro, a está substituindo interinamente no Lar até que a paróquia decida o que fazer.

Padre Belizário informou também que, em todo esse tempo, dona Lourdes só recebeu pessoalmente, na casa dela, as três viúvas, as quais vieram vê-lo logo em seguida. Estavam seriamente preocupadas. Disseram tê-la encontrado com uma aparência de dez anos mais velha que da última vez que a viram. Não fazia mais rinsagens ou pintura dos cabelos, não se maquiava, nem batom usava mais. Com as roupas ela parecia não estar preocupada, ela que sempre se via bem vestida, com rigor e bom gosto. Viram a casa descuidada para quem era conhecida pelo capricho no lar, até o jardim está carente de trato. Apesar das olheiras fundas que denunciavam insônias, não pareceu a elas que sofria problema grave de saúde. Ela alegou depressão, não revelou nada importante e disse que não mais participaria dos almoços com as amigas, que deixaria a causa a partir de então, e no que diz respeito aos seus próprios interesses, inteiramente nas mãos do Dr. Gusmão e delas, no que dissesse respeito aos interesses comuns. As três mulheres foram unânimes em avaliar a situação relacionando-a com alguma novidade sobre o filho que ela não quis informar. Enfim, todo mundo em Valadares está aguardando a chegada de padre Antonio para saber sobre o que está ocorrendo com dona Lourdes.

A mesa e o refeitório estavam cheios neste momento e quase não se ouvia uma voz, pois todos aguardavam o fim do diálogo dos dois padres para cumprimentarem padre Antonio e, fingindo que não, tentavam ouvir alguma coisa do que cochichavam. Padre Antonio encerrou o diálogo, cumprimentou a todos com uma saudação geral, pediu licença e subiu aos seus aposentos.

Algum tempo depois, retornou envergando batina nova que mandara cortar numa alfaiataria de Santos, o que causou grande surpresa. Há muito ele não era visto de batina. Disse a padre Belizário que só celebraria a missa das seis da tarde e a todos informou que iria ver Lourdes e não tinha hora de retorno. Ordenou que se concentrassem nas atividades do dia e da festa de domingo, que se esquecessem de dona Lourdes e respeitassem o recolhimento a que ela mesma se impôs, e que, até segunda-feira, quando ele pretendia fazer uma reunião sobre o assunto com os interessados, incluindo convidados de fora, não se falasse nela na paróquia. E saiu.

Capítulo 25