Capítulo 10

Taquinho abriu os olhos depois da meia hora de cochilo a que se acostumou aos fins de tarde, logo depois de administrados os seus medicamentos de rotina. Deitado na confortável cama do quarto arejado e bem iluminado em que se hospedava, ele às vezes se beliscava para certificar-se de que não estava sonhando. Desta vez, não precisou, estava bem acordado... e feliz, chegava a sorrir consigo mesmo. Mas não era a felicidade do tipo daquela em que o vimos ao se aconchegar na poltrona do avião, no início da nossa história. Não, de forma alguma! Era um outro tipo de felicidade, tão infinitamente distante daquela, que, em suas meditações, Taquinho a imaginava como as do tipo que devem iluminar os grandes descobridores e inventores diante dos grandes achados históricos; no caso dele, a descoberta maravilhosa da sua própria consciência, ou do seu próprio ser.

Zahirah, a luminosa, entrou trazendo o lanche da sua dieta numa bandeja, alegre como sempre. Era linda a filha de Shakir, além de ser uma bailarina magnífica. Taquinho via nela traços de sua mãe; imaginava-a, na mesma idade, com a graça, a cor clara da pele, o arredondado do rosto e os olhos castanhos amendoados muito semelhantes aos de Zahirah. Trocaram sorrisos, e ela se foi, silenciosa e brejeira, fechando a porta com cuidado. Era um anjo! Taquinho e ela cultivavam um amor fraternal, pois outro ele não podia mais - a tortura o despojara das funções sexuais; mas isto agora não lhe importava nem um pouco. Estava a dois dias da cerimônia da Chahada, que o converteria em muçulmano e, depois, se os clérigos lhe concedessem a honra, em Mujahid. Taquinho considerava esses últimos quase quatro meses como equivalentes a toda uma vida que valesse a pena ter sido vivida. Daí aqueles conceitos que expressou em seus escritos, a respeito dos valores qualitativos e quantitativos do tempo.

De memória, ia repassando os acontecimentos desde que Fadil o deixou no esconderijo em Bagdá, no porão de uma casa onde passou dois dias com uma garrafa d’água e um pão para se alimentar. O porão pareceu-lhe uma mansão perto das celas de Guantânamo, e a comida um manjar, embora não pudesse desfrutar-lhe o sabor por causa dos problemas no paladar e no aparelho digestivo. Molhava o pão na água para comê-lo sem se engasgar.

Fadil retornou com dois homens, cada um carregando, com grande esforço, duas belas poltronas estofadas (Taquinho nunca vira poltronas como aquelas) e disse-lhe que um sufi viria avaliá-lo quanto à possibilidade da conversão. Explicou-lhe que o sufi tinha sido cônsul em Portugal por muito tempo, falava e escrevia bem em português, e o sobrenome Raghid o convencera a vir visitá-lo (“É a primeira vez que o Raghid me valeu para algo”, pensara, então, Taquinho). Disse-lhe que a audiência poderia ser demorada, em geral levava horas e até dias, e o aconselhou a ser sincero, não mentir, não distorcer fatos nem tentar ludibriar o sufi. Orientou-o para que o aguardasse de pé, respeitoso, só fizesse o que ele lhe ordenasse, e que não falasse uma palavra sem que lhe fosse solicitada. Fadil saiu com os homens e logo os três retornaram acompanhando Shakir, que vinha elegantemente trajado, com um terno muito bem cortado (“Digno do meu avô”, recordou Taquinho) e um turbante alvo no qual vinha preso, ao centro, um grande rubi que combinava com a cor da gravata. Shakir olhou bem o garoto dos pés à cabeça, trocou algumas palavras em árabe com os três homens, e se foi. Taquinho baixou a cabeça, derrotado, mas, para sua surpresa, Fadil o cumprimentou, parabenizando-o, pois ele fora brilhantemente aprovado. Disse que receberam ordens para levá-lo à residência do sufi, o qual assumiria, ele mesmo, a tarefa de iniciá-lo. Além do mais, Taquinho seria recebido como hóspede do sufi até a sua conversão. Ambas as decisões do sufi eram consideradas honras extremas.

No mesmo dia ele foi levado até o belo, grande e rico palacete do sufi, com vários empregados e serviçais, e foi instalado naquele apartamento (quarto com banho privativo) cuja grande janela dava para um jardim interno belíssimo que era cuidado por dois jardineiros supervisionados pelo bom gosto de Zahirah. Lá o esperavam dois médicos e um enfermeiro que, acompanhados por Fadil para facilitar a comunicação e a confiança do paciente, durante uma semana o examinaram, o medicaram e converteram o quarto num pequeno hospital, cheio de produtos de uma outra farmácia que ele não conhecia, a islâmica, além de alguns produtos, equipamentos e acessórios hospitalares convencionais. Tais expedientes trouxeram um enorme conforto para ele, e o livraram dos desmaios e falta de ar de que vinha sendo vítima desde o segundo ano em Guantânamo. Os médicos prescreveram-lhe dieta à base de alimentos líquidos, cremosos e gelatinosos e uma série de poções, remédios e vitaminas que deveria ingerir rotineiramente. Depois, veio-lhe um enxoval de roupas ocidentais de boa qualidade que serviam nele como se feitas sob medida, e quase encheram o armário amplo que equipava o quarto. Vieram também os livros, todos em português e que Fadil ia passando para ele com orientações sobre cada um. O mais importante naquele momento era um manual de iniciação no islamismo para os povos de língua portuguesa, escrito pelo próprio sufi, que foi o primeiro a ser lido e veio a ser o de cabeceira do iniciante.

Começou a ler muito; pela primeira vez na vida deixou-se levar pela leitura de livros e saboreá-los com atenção interessada. Tinha facilidade; desde cedo, quase criança, percebera isso, mas, em Valadares, procurava escondê-lo dos colegas de escola e dos amigos, pois todos detestavam ler livros, e ele fingia que detestava também. Além de ler com rapidez – em poucas horas podia ler volumes que tomariam dias ou semanas de leitores normais -, tinha o dom de apreender tudo logo na primeira leitura e ainda ser capaz de citar trechos e até parágrafos inteiros, de memória. Antes, ele procurava fugir dos livros para manter longe da consciência pensamentos que julgava desagradáveis ou pertubadores; envergonhava-se de ter facilidade para ler e escrever como se tais virtudes fossem defeitos execráveis. Valia-se de obnubiladores da consciência que buscava em banalidades fáceis, a fim de se parecer igual aos amigos e colegas – coisa em que nem sempre era bem sucedido. Agora, via-se dedicando aos livros de oito a dez horas por dia, às vezes até mais, devorando-os, como se a tentar recuperar o tempo perdido. Sua saúde e os traumas psíquicos não lhe permitiam dormir bem nem ter sonos longos, e ele cobria insônias, mal-estares, dores e febres com a leitura de livros que, além de lhe proporcionarem as maravilhas do conhecimento e abrirem as janelas da sua consciência, traziam-lhe também alívio físico, distraindo-o desses problemas.

No primeiro domingo do mês de setembro, Fadil chegou cedo acompanhado de um barbeiro que lhe fez o cabelo e a barba com extremo capricho, deixando bem desenhados o cavanhaque e o bigode, ao estilo árabe. Ficou combinado que o barbeiro viria aos domingos pela manhã. Depois, o amigo pediu-lhe que se vestisse com a melhor roupa, porque teriam o primeiro encontro com o sufi, após o qual Fadil se despediria, pois tinha de voltar a Amã. Taquinho estava outro, quase renascido.

Fadil e ele foram recebidos na esplêndida biblioteca do sufi, que os acomodou bem à vontade em grandes almofadões dispostos sobre um tapete persa magnífico, ao lado de uma grande vidraça que dava também para o jardim interno, mas em sua parte mais rica em paisagismo. Estava acompanhado de Zahirah, e foi quando Taquinho conheceu vez o rosto dela, pois antes já a vira cuidando do jardim, porém, usando véu e roupas discretas. Ali, ela estava lindamente vestida e sem o véu, olhando sorridente para ele, e cumprimentando-o em português de Portugal.

Estabeleceu-se nesta primeira e rápida reunião que Taquinho começaria o processo de sua iniciação no dia seguinte. Todos os dias ele deveria acordar antes do nascer do sol, ir para a biblioteca e fazer a leitura de uma surata do Alcorão escolhida pelo mestre. Depois fariam o desjejum para em seguida começarem as aulas, os exercícios espirituais e a iniciação nos chamados “cinco pilares do Islã”. A dificuldade que Taquinho teve ali com o português de Portugal, que era falado pelo sufi e a filha, foi superada por ele em menos de uma semana.

Taquinho demonstrou disciplina, humildade e vivacidade desde este primeiro encontro; encantou o mestre e a filha. No final daquela mesma semana, o sufi deu ao discípulo uma folha de papel e uma caneta esferográfica pedindo para que escrevesse reflexões sobre a sua vida interior, usando apenas um lado da folha. Advertiu-o de que o papel em Bagdá era difícil e racionado e de que não o desperdiçasse. Disse-lhe para ocupar uma das mesas perto da estante mais ampla e, quando acabasse, deixasse ali mesmo o escrito. Em seguida, saiu, deixando-o só na biblioteca.

Capítulo 11