Capítulo 22

O telefone e a campainha tocaram simultaneamente e acordaram dona Lourdes, assustada, no meio de um sonho, quase um pesadelo. Não atendeu a nenhum dos dois, apesar da insistência do telefone, e ficou na cama ainda confusa e sem saber distinguir entre a realidade e o sonho.

Nele, seu pai, o “avô Pedro”, insistia em ver o envelope que o neto enviara da “minha terra” e ela se recusava a entregá-lo. Havia momentos em que o avô surgia jovem, a cara do neto, de terno, gravata e turbante, como na foto do casamento que ela guardava na caixa de recordações. Em outros momentos, o próprio Taquinho entrava no sonho pedindo-a que desse o envelope ao avô, e nessas aparições ele era a cara do avô. Ela ficava paralisada nesses momentos, sem conseguir mexer um músculo, em pânico, não sabia o que fazer. Foi num deles que as campainhas do telefone e da porta entraram nos diálogos aflitos do sonho e ela acordou assustada.

Custou a se dar conta da realidade e, depois, a reunir forças para se levantar. Ao fazê-lo, pôs a mão na testa: quase se esquecera! O dia seguinte seria seis de janeiro, Dia de Reis, o dia em que falecera seu pai, há nove anos. Desde que o enterrara, todos os anos ela ia nesse dia ao cemitério da Igreja de Lourdes e plantava uma muda de azaléia ao lado do túmulo onde descansavam os restos mortais de seus pais. Prometera a si mesma fazê-lo durante dez anos, tempo em que assumira como o de guarda de luto pela perda do pai. Ele adorava azaléias, em especial as cor-de-rosa, porque davam flores no mês de setembro, quando ele fazia aniversário.

Quando o pai de dona Lourdes adquiriu aquela casa, pediu à esposa, Laila, cujas mãos ele considerava iluminadas para a jardinagem, que plantasse um canteiro de azaléias. E ela o plantou bem no centro de um jardim de rosas, também dedicado ao marido, à frente da casa. Depois da morte da esposa, seu Pedro passou a cuidar pessoalmente do jardim com um esmero e um carinho semelhantes aos que a ela dedicara. Quando o jardim está florido, é comum ver transeuntes parados ali admirando as flores e comentando a beleza delas. Desde criança, Lourdes ajudava o pai nesses cuidados e, depois da morte dele, manteve-os com o costumeiro capricho.

O jazigo da família consistia numa única e retangular lápide de mármore negro posta com ligeira inclinação em declive da cabeça para o pé do túmulo, sobre um rodapé do mesmo mármore, pouco acima do nível do solo. Situava-se na ruela central da pequena área de terra batida e algum gramado esparso, de uns 800 metros quadrados, do modesto cemitério reservado aos Filhos de Maria, nos fundos da Igreja de Lourdes.

Sobre a lápide, logo abaixo da cruz de bronze que se constitui no único ornamento da lápide negra, já haviam sido gravados, em jato-de-areia, e com belos e bem desenhados tipos caligráficos, os seguintes dizeres:

Laila Al-Mahmoud Raghid
*Beirute, 1924 – †G. Valadares, 1953

Pierre Raghid (Pedro Alfaiate)
*Paris, 1918 - †G. Valadares, 1995

Eustáquio Marcondes Varela (in memorian)
*Almenara, 1948 - †Sobrado, 2003

Oito arbustos de azaléias, quatro de cada lado do jazigo, rigorosamente aparados a 1,20m de altura, constituíam, até aquele momento, o jardim post mortem do casal. Foram plantados pela dedicada filha, um a cada ano depois do falecimento do pai, sempre no seis de janeiro. O plano era o de duas fileiras de cinco arbustos, quando terminasse a guarda de luto. Todo 23 de setembro, dia do nascimento do pai, ela levava uma dúzia de rosas do seu jardim, da mesma cor das floridas azaléias, e as organizava com gosto sobre a lápide. Fazia o mesmo aos nove de maio, aniversário da mãe, mas isto, desde criança, junto com o pai. Também no Dia dos Mortos, dois de novembro, repetindo o costume paterno, ela levava nova dúzia de rosas carmim. Nessas ocasiões, dava uma gratificação a seu Cirineu, zelador da igreja, para que mantivesse as azaléias bem aparadas e irrigadas e a lápide limpa e reluzente.

Dona Lourdes fez um café bem forte a fim de ter forças para cuidar de seus mortos. Tinha de preparar uma muda de azaléia para o dia seguinte e pretendia ir bem cedo ao cemitério levando numa sacola de feira os instrumentos de jardinagem e a muda preparada com um pouco de terra e bem umedecida, num saco plástico.

Foi tomando o café que decidiu, enfim, o que fazer sobre Taquinho. Decidiu por entregar o caso à justiça divina; não fazia fé na dos homens e não se via capaz de enfrentá-la sozinha. Com sua tesoura precisa, ela recortou os três envelopes no mesmo formato dos papéis e fez o mesmo com a cartolina que encapava o volume do terceiro envelope, retirando também a amarração de barbante que o encadernava. Fez então um só volume de papéis empilhados, respeitando a ordem original com que lhe fora enviado, isto é, o lado subscrito do primeiro envelope como capa do volume, seguido da carta para ela; o mesmo lado do segundo envelope, seguido da carta ao pai; o terceiro envelope antes da capa de cartolina e do texto do relato e seus anexos; para, finalmente, fechar a pilha com o outro lado do primeiro envelope onde fora subscrito o endereço dela. Feito isso, enrolou cuidadosamente a pilha de papéis no menor diâmetro possível e amarrou o rolo com duas fitas de tecido verde (escolheu-as pensando na cor predileta do filho e no significado daquela cor, identificada com a “esperança”), dando-lhes um laço bem apertado.

Da caixa de recordações retirou tudo o que havia dentro para ver se o rolo poderia caber em seu interior. De fato, coube apertado, disposto em diagonal, e necessitando-se de uma pequena pressão no fechamento da tampa para travar o delicado fecho da caixa.

Era um estojo de madeira, manufaturado em requintado artesanato médio-oriental para guardar um precioso colar que pertencera à sua bisavó. Segundo a tradição familiar, ela fora odalisca e a esposa predileta de um sultão da Turquia, o qual a presenteara com a valiosa jóia. A avó de dona Lourdes se desfizera da jóia em Beirute, antes de emigrar com a família para o Brasil, mas conservara o estojo, que, depois de pertencer a Laila, restou com Lourdes.

Não era uma caixa qualquer. Era obra de sofisticada marchetaria oriental, feita em marfim e madeiras nobres de vários tons e cores, compondo primorosas vinhetas e xadrezes em toda a tampa e nas laterais. No centro da tampa, vinham, incrustadas, duas gemas da mesma pedra vermelha cortadas na forma do crescente e da estrela, compondo assim o conhecido símbolo usado na bandeira da Turquia e de outros países islâmicos. Internamente, fora-lhe retirado o amparo do colar e recebera forração levemente almofadada de seda pérola para a sua nova utilidade como caixa de recordações. O fecho e as dobradiças eram externos, grandes e bem desenhados, confeccionados em ouro puro. No fecho, havia uma inscrição em árabe que, dizia-se, seriam as iniciais do nome do sultão, perdido na noite dos tempos já na época em que dona Laila casou-se com seu Pedro. Travava-se automaticamente num mecanismo de molas internas que, ao fechar-se a caixa, prendiam a lâmina fixada na tampa quando esta se introduzia toda no receptáculo da parte inferior. Para abri-la, destravava-se o mecanismo pressionando-se para dentro duas teclas laterais móveis, simultaneamente com o polegar e o indicador. Não dispunha de dispositivos de segredo, chave ou cadeado.

Terminado esse trabalho ela fez uma pausa para se alimentar. Não comeu todo o frugal prato de banana amassada com aveia que preparou. Ao comer, acabou perdendo a concentração e mergulhou numa crise de choro convulsivo que durou várias horas. Só logrou interrompê-la quando voltou a lembrar-se do preparo da muda, e isto ia lá pelo fim da tarde. Durante a crise, o telefone tocara duas vezes, insistente, mas ignorado. No jardim, enquanto de joelhos retirava a muda de azaléia, foi interpelada por um vizinho lhe desejando “Feliz Ano Novo, dona Lourdes”.

Duplicou a dose costumeira do tranqüilizante a que se viciara para dormir, desde o desaparecimento de Taquinho. Praticamente desmaiou sobre o seu leito, com o rosto banhado de lágrimas, depois de ajustar o despertador para acordá-la às cinco da manhã.

Às seis do dia seguinte ela já estava ajoelhada, no cemitério da Igreja de Lourdes, ao pé do jazigo, cavando um buraco bem largo e fundo na terra. Era verão, fazia muito calor, e ela suava na execução da tarefa. E tinha pressa. Desejava terminar tudo antes da chegada de seu Cirineu, que pegava o trabalho às sete; não queria se encontrar com ninguém e nem que alguém visse o que estava fazendo. Por várias vezes, mediu o tamanho da cova com a caixa dos “restos mortais de Taquinho”, bem embrulhada num saco plástico. Ao fim, o embrulho coube horizontalmente no fundo da cova, como ela desejava. Cobriu-o com terra e sobre ela plantou a muda de azaléia. Limpou e alisou a terra em torno da muda com uma vassoura de mão e regou-a com a água de uma garrafa de plástico que levara na sacola. Foi embora antes da chegada de seu Cirineu.

Capítulo 23