Capítulo 13


- O que deve o homem fazer?

- O bem.

- O que é o bem?

- Seja o que for ou onde esteja, isto não é importante. É nosso dever buscá-lo, sempre.

- Estará na razão?

- A razão serve ao poder dos homens sobre outros homens. Muitas vezes, assinala falsos caminhos.

- Na moral?

- Se for a que começa pela fé, servirá ao dever e apontará o caminho. Por ele, irei.

Assim o jovem discípulo do sufi ia enfrentando a difícil sabatina, respondendo com serenidade às questões colocadas, uma após a outra, pelos que o rodeavam. Era numa reunião secreta numa madraça (universidade) de Bagdá, no seu salão hermético e mais nobre, onde pontificam mestres a outros mestres. O evento fora transferido para lá em vista da curiosidade que a trajetória do jovem discípulo de Shakir despertara nos mais fechados círculos islâmicos, e à sabatina concorrera uma inesperada audiência. Houve quem pedisse um intérprete imparcial, ao que Shakir imediatamente consentiu, e ninguém menos que um ex-embaixador do Iraque no Brasil, então catedrático da Língua Portuguesa na madraça, se dispôs a sê-lo.

Para o sabatinado fora um dia inesquecível, que caiu, em nosso calendário, numa quarta-feira, dia oito de dezembro de 2004. Era um dia muito frio, mas ensolarado e bonito.

De manhã, na sala de orações da casa do sufi, ele protagonizara a cerimônia da Chahada, que foi simples e discreta, mas rigorosa, tendo Fadil e um clérigo xiita, amigo do sufi, como as testemunhas regulamentares exigidas pelo rito de conversão. Diante delas e do sufi ele pronunciou três vezes, com convicção, o dito sunita:

lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi (transliteração; em nossa língua: “Não há outra divindade além de Deus [Allah]; Maomé [Muhammad] é o seu profeta”).

Em seguida, fazendo a genuflexão regulamentar direcionada para a esguia palmeira que, da janela frontal da sala de orações, indicava a direção de Meca, todos oraram a surata que fora escolhida pelo novo fiel, a 17ª, “A Viagem Noturna”.

Ao final, veio Zahirah trazendo, numa almofada de seda alva, um broche com uma bela esmeralda losangular incrustada em uma moldura de ouro oval; simbólica homenagem à bandeira do país de origem do jovem discípulo. O sufi prendeu o broche no turbante de Faraj, beijou-o nos dois lados da face, olhou-o bem nos olhos e no broche preso ao turbante, e abraçou-o vigorosamente.

Depois de um almoço frugal servido no varandão da lateral norte do palacete, o iniciado foi levado pela primeira vez a uma mesquita, próxima à casa do sufi, onde fizeram a oração da tarde. A seguir, foram para a madraça. A sabatina começou após a oração do pôr-do-sol, no mesmo salão do evento, com todos os admitidos naquela reunião secreta, cerca de trinta altas personalidades da resistência e do islamismo de Bagdá, sunita e xiita.

Impassível, Shakir acompanhou, orgulhoso, o desempenho do discípulo, que se saiu com elegância das armadilhas que aquelas cobras criadas do pensamento islâmico prepararam para ele. Algumas, inclusive, baixas, como a que um outro sufi armou ao perguntar se o sabatinado tinha certeza de ter se despojado dos vícios que a sua origem ocidental lhe impregnara desde o berço.

- Confundes a minha origem com o comportamento de alguns devassos que vêm governando a minha nação - respondeu, sereno, o jovem. E emendou: - Permita-me desconsiderar a parte equivocada de vossa pergunta. Orgulho-me da minha origem, pois ela está em meu povo; um povo irmão do vosso e que também sofre a perfídia das elites que o governam. Também somos um país invadido, senão pela violência desatada com que invadem o vosso, mas pela mesma estupidez e prepotência. Não sei se me despojei dos vícios comuns aos mortais – os haverá lá como aqui, penso eu -, mas garanto-vos que tudo faço ao meu alcance para manter em meu ser as virtudes que meu nobre povo teria porventura me consignado desde o berço.

Coube a Shakir, que se manteve em silêncio o tempo todo, logo ao perceber a platéia satisfeita e encantada, fazer a última pergunta, depois de quase uma hora de sabatina:

- O que esperas encontrar como Mujahid?

- O esplendor da luz de Deus! - respondeu prontamente o jovem Faraj.

- Faraj Mujahid! Faraj Mujahid! – bradaram todos, reverenciando o iniciado.

Taquinho era um Mujahid.

Capítulo 14