Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque.
Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma névoa de spray mal cheiroso.
Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”, só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em levá-lo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A.
Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria.
Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela, onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois, passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho trazia na sacola.
Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois (Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados.
Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França), mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá.
Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho, pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas, sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!”
Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disse-lhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica! Bye and good luck!”
Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro, homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em lançamento.
A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo; quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas que tomou até chegar ali, exausto e bufando.
Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então, difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo, se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele. Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca, tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação, a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas.
Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação, acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou: GUANTÂNAMO.
Capítulo 3
Capítulo 3
Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida” ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor.
Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas.
Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale.
Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um.
Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores.
Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial.
Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião.
Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade.
Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.
A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis.
Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.
O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.
Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.
Capítulo 4
Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três amigas.
Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram “terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias, as quais foram em seguida contratadas pela Vale.
Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada, possuía 40%, os demais, 20% cada um.
Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora, visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e outros credores.
Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou sem ordem judicial.
Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e, como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes. Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos maridos e encerrou a reunião.
Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores, oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças, protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades, chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS, IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em favor de um comerciante da cidade.
Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses, nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.
A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas de papéis.
Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos, detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra, apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta: “O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” – exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas; inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias, se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.
O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília, conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas, jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes” estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.
Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas” iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.
Capítulo 4
Capítulo 4
Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã, que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se.
Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só.
Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos.
O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.
Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção.
Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres.
Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”.
Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.
Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.
Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta.
Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.
Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”.
Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.
Capítulo 5
Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários, mas naquele momento preferia estar só.
Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas. Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões. Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora enfrentava tantos sofrimentos.
O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce, recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.
Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua direção.
Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo, nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitava-se que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não; o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto. Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém, Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara, de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas imediações das torres.
Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança nacional”.
Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens. Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.
Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado. Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo. Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.
Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam, independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou nem um centavo daquela conta.
Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.
Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim, talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das confusões do “pai de Taquinho”.
Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido, no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.
Capítulo 5
Capítulo 5
O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com “pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abri-lo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro.
De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.
Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério.
Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”.
Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.
Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.
Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo.
“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.
As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.
“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.
A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo.
No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”.
Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade.
Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.
Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.
Capítulo 6
De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.
Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como algo de valor, que se devesse levar a sério.
Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que, “especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que qualquer uma das sete pragas do Egito”.
Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades, insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.
Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”. Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...) “Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade, sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz, mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí, em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.
Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático (quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo. Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004, José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por si mesmo o nome completo.
“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes – “quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.
As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.
“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós, afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.
A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo, ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste resumo.
No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um mínimo de sofrimento para ela”.
Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA, feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio, pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazê-lo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes, preservando-lhes sigilo processual e de identidade.
Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.
Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope, endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.
Capítulo 6
Capítulo 6
A pobre senhora não sabia o que fazer. Não estava acostumada e nem gostava de tomar decisões importantes. Lembrou-se de que a última decisão importante que tomara em sua vida foi a de deixar Belo Horizonte com Taquinho para voltar a morar com o pai em Valadares. E demorou quase dois anos para tomá-la desde que pensou nela pela primeira vez. Quando o fez, o marido estava de viagem, e ela comunicou-lhe por telefone. Disse a ele que não estava se separando, mas voltando para a sua cidade, onde tinha trabalho e a companhia do pai. O marido retrucou que ficaria mais difícil encontrarem-se, porque naquela época não havia vôos de carreira para Valadares, e isto complicava as coisas para ele no emprego. Mesmo assim, ela fez as malas, pegou Taquinho e foi para a casa do pai.
Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento. Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho. Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em comum, para eles, não se tornara necessária mais.
Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu coração de mãe e, de certa forma, a consolava.
Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso; Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho, há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”, palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte.
Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo, informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio, quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José Eustáquio.
Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazê-la dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta:
- Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem?
Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o:
- É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são?
- Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se recupere.
Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza, esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia nele, linha por linha.
Capítulo 7
Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento. Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho. Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em comum, para eles, não se tornara necessária mais.
Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu coração de mãe e, de certa forma, a consolava.
Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso; Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho, há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”, palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte.
Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo, informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio, quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José Eustáquio.
Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazê-la dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta:
- Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem?
Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o:
- É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são?
- Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se recupere.
Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza, esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia nele, linha por linha.
Capítulo 7
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